DA FLEXIBILIZAÇÃO DE EXIGÊNCIAS PARA VALIDAÇÃO DE TESTAMENTO PARTICULAR – ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
1. INTRODUÇÃO
O presente parecer tem como objetivo analisar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a flexibilização das formalidades exigidas para a validade do testamento particular, bem como os limites dessa mitigação. Embora a legislação estabeleça requisitos específicos para garantir a autenticidade e a segurança jurídica do ato, o tribunal tem admitido, em hipóteses excepcionais, o abrandamento de certas exigências formais, desde que não reste dúvida quanto à manifestação da última vontade do testador.
No entanto, há casos em que a ausência de requisitos essenciais compromete a validade do testamento, sobretudo quando a falta de formalidades elementares impede a comprovação da autenticidade do documento. Dessa forma, este estudo abordará o regime jurídico do testamento particular, os precedentes que permitiram certa flexibilização dos requisitos legais e as decisões em que a ausência de formalidades essenciais levou à sua invalidação.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. Do Testamento Público e Particular
O testamento público é aquele lavrado por tabelião, perante testemunhas, garantindo segurança jurídica e publicidade ao ato, cujos requisitos estão expostos no art. 1.864 e seguintes do Código Civil.
Já o testamento particular, previsto no art. 1.876 do Código Civil, pode ser escrito manualmente ou por processo mecânico, devendo, em ambos os casos, ser lido e assinado pelo testador na presença de pelo menos três testemunhas, que também o assinam, sendo vedadas rasuras e espaços em branco na versão mecanografada.
Logo, a validade do testamento particular está condicionada à comprovação de sua autenticidade e ao cumprimento das formalidades acima descritas. No entanto, a jurisprudência brasileira tem flexibilizado essas exigências, sobretudo quando não há dúvida quanto à última vontade do testador.
2.2. Do Exame Das Formalidades Previstas Em Lei À Luz Da Preservação Da Manifestação De Última Vontade Do Testador
Enquanto a legislação detalha os critérios para o reconhecimento e processamento do testamento particular, visando prevenir fraudes e garantir o cumprimento da última vontade do testador, a realidade frequentemente leva à sua elaboração sem a devida observância de certas formalidades, o que pode comprometer sua validade.
Do exame da jurisprudência do STJ, é possível extrair que cada situação deve ser analisada individualmente, avaliando se a falta de determinada formalidade compromete sua validade à luz dos demais elementos de prova e da preservação da manifestação de última vontade do testador.
A título de exemplo, cita-se o REsp 701.917, em que a Quarta Turma admitiu, de forma excepcional, a flexibilização das exigências legais quanto ao número de testemunhas para validar o ato.
Já no Resp 1.633.254, a ministra Nancy Andrighi decidiu pela validade de testamento particular apesar da ausência da assinatura de próprio punho do testador e da elaboração do testamento a rogo, com apenas a aposição de sua impressão digital, eis que não restavam dúvidas quanto à sua última vontade, pois, embora apresentasse limitações físicas, não possuía qualquer comprometimento cognitivo.
Por outro lado, há precedentes em que a invalidade do testamento particular foi reconhecida diante de vícios graves, nos quais a inobservância das formalidades essenciais comprometeu a segurança jurídica e a autenticidade da manifestação de última vontade, como é o caso de documentos apócrifos, ainda que redigidos de próprio punho.
Esse foi o entendimento da Terceira Turma ao julgar o Resp 1.444.867, cujo trecho mais relevante segue abaixo, extraído do voto do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva:
No caso em apreço, além da falta de leitura para as testemunhas, o próprio testamento é apócrifo, denotando dúvida até mesmo acerca da finalização de sua confecção. Logo, ainda que se admita, em casos excepcionalíssimos, a relativização das exigências contidas nos incisos II e III do artigo 1.645 do Código Civil de 1916, é imperativo, para que se reconheça a validade do testamento particular, que tenha ele sido escrito e assinado pelo testador.
Embora o caso tenha sido examinado à luz do Código Civil de 1916, vigente à época do ato, o relator ressaltou que o mesmo entendimento se aplica ao Código Civil de 2002, considerando as inovações dos artigos 1.878 e 1.879.
Isso significa que falta de assinatura do testador é vício grave que contamina o próprio conteúdo do testamento, não podendo ser considerando vício meramente formal, consoante outro recente julgado, cujo trecho se transcreve abaixo:
(...)
3. No caso, além da ausência de oitiva de uma das três testemunhas, sem que tenha sido declarada qualquer circunstância excepcional justificadora, as instâncias ordinárias entenderam não ser possível constatar, com segurança, se o documento corresponde à real vontade do testador, pois ele não assinou a página do testamento que contém o ato de disposição da totalidade de seus bens em favor da recorrente.
(...)
(AgInt no AREsp n. 2.601.243/RJ, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 25/11/2024, DJEN de 6/12/2024.)
As formalidades somente podem ser afastadas quando provadas situações excepcionalíssimas, de modo que a falta de testemunhas, por exemplo, teria que ser precedida de circunstância excepcional, como é o caso do julgado abaixo:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ABERTURA, REGISTRO E CUMPRIMENTO DE TESTAMENTO PARTICULAR ESCRITO DE PRÓPRIO PUNHO. DESCUMPRIMENTO DE FORMALIDADES LEGAIS. DÚVIDAS QUANTO A REAL VONTADE DO TESTADOR. IMPOSSIBILIDADE DE CONFIRMAÇÃO JUDICIAL. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
1. As formalidades do testamento estabelecidas na lei têm por finalidade garantir a preservação da primazia da vontade do testador, não constituindo um fim em si mesmas.
2. Admite-se, por exemplo, que o testamento particular escrito de próprio punho pelo de cujus, mas sem testemunhas, seja confirmado judicialmente quando houver indicação, na própria cédula, de circunstâncias excepcionais capazes de dispensar essa formalidade legal (art. 1.876 do CC/02).
3. No caso, porém, faltaram testemunhas presenciais do ato e não foi declarada nenhuma circunstância excepcional justificadora.
4. Além disso, não é possível visualizar com segurança se o conteúdo do documento apresentado corresponde de fato à vontade do testador, pois ele não assinou todas as folhas do respectivo instrumento e porque o confeccionou em mais de uma assentada.
5. Incabível, dessa forma, conferir validade a essa manifestação de última vontade.
6. Recurso especial não provido.
(REsp n. 2.000.938/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, relator para acórdão Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 8/8/2023, DJe de 25/8/2023.)
No REsp 1.639.021, a Terceira Turma confirmou a decisão que invalidou um testamento escrito de próprio punho, devido à ausência de assinatura das testemunhas e à inexistência de qualquer situação emergencial que justificasse essa falha, especialmente considerando o intervalo de quase três meses entre sua elaboração e o falecimento da autora da herança.
Da mesma forma, extrai-se da doutrina da Carlos Roberto Gonçalves[1],
A presença de três testemunhas no caso de lavratura de testamento particular escrito de próprio punho é requisito indispensável, nos termos do art. 1.876, § 1º, do Código Civil, sob pena de nulidade, tendo em vista que ouvir a leitura do testamento e subscrevê-lo faz parte do próprio conceito de testamento particular. Assim proclamou o Superior Tribunal de Justiça, mantendo a invalidade do testamento reconhecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ao fundamento de que “não foi explicado, de forma inequívoca e incontroversa, a razão da ausência de assinaturas e o motivo pelo qual as testemunhas, apesar de presenciarem a realização do testamento, não o assinaram nem o levaram ao notário ou trouxeram o oficial até a residência da testadora, uma vez que houve tempo para isso. Houvessem os herdeiros testamentários e legítimos apresentado, em conjunto, pedido de cumprimento ao testamento, demonstrando, em uníssono, a concordância, aí sim poderíamos, ao arrepio da lei, determinar seu cumprimento. Entretanto, se há reclamo quanto à inobservância de formalidade essencial e legal, não pode preponderar a vontade sobre a forma, porque, neste caso, a sucessão legítima predomina sobre a testamentária”
3. CONCLUSÃO
Diante do exposto, conclui-se que a validade do testamento particular depende do atendimento às formalidades legais estabelecidas no Código Civil, as quais visam garantir a autenticidade e a segurança jurídica da manifestação de última vontade do testador. Embora a jurisprudência do STJ admita, em situações excepcionalíssimas, a flexibilização de determinados requisitos formais, essa mitigação ocorre apenas quando há provas inequívocas da intenção do testador e da ausência de riscos de fraude ou manipulação.
Por outro lado, a jurisprudência também demonstra que vícios graves, como a ausência de assinatura do testador ou a falta de testemunhas sem justificativa plausível, comprometem a validade do testamento, uma vez que retiram a confiabilidade do documento. Assim, a análise da admissibilidade do testamento particular deve sempre considerar o equilíbrio entre a proteção da última vontade do testador e a necessidade de preservar a segurança jurídica, evitando a fragilização dos requisitos essenciais à sua validade.
Portanto, a exigência de formalidades deve ser entendida como um meio de assegurar a efetividade dos direitos e a preservação da segurança jurídica. Em regra, tais exigências não representam uma limitação aos direitos, mas garantem seu exercício regular, não podendo ser dispensadas meramente por conveniência.
[1] GONCALVES, Carlos R. Direito Civil Brasileiro: Direito das Sucessões. v.7. 17. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2023. E-book. p.104. ISBN 9786553628335. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786553628335/. Acesso em: 15 mar. 2025.