Da não incidência de IPI na saída de mercadoria da trading ao adquirente na importação por conta e ordem
Nas importações por conta e ordem de terceiro, costumeiramente há cobrança de IPI quando da remessa de mercadorias do estabelecimento da trading ao adquirente. Contudo, considerando que tal movimentação não pode ser considerada como operação de industrialização ou de comercialização, entende-se que possibilidade de incidência de IPI, como melhor se demonstra abaixo.
I – Do IPI, da regra-matriz de incidência tributária e da importação por conta e ordem de terceiro
O Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) é um tributo federal previsto no art. 153, IV, da Constituição Federal (CF),[1] e regulado, principalmente, pelo Código Tributário Nacional (CTN) e pela Lei n. 4.502/64, incidindo sobre operações com produtos industrializados, nacionais ou importados.
A compreensão de que incide sobre operações com produtos industrializados – e não sobre produtos industrializados – decorre do entendimento majoritário da doutrina de que o art. 153, IV, da CF, deve ser interpretado conjuntamente do seu § 3º, II, o qual dispõe que o tributo será “não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.[2]
Por “operação”, entende-se o negócio jurídico que transfere determinado produto a outrem, a título gratuito ou oneroso, de forma provisória ou definitiva. Por “produto”, compreende-se tudo que é produzido, pelo homem ou pela natureza, com finalidade de consumo ou comercialização; no caso do IPI, contudo, apenas as operações que envolvem produtos industrializados estão sujeitas à tributação. Em vista disso, por “produto industrializado”[3] se concebe aquele cuja natureza ou finalidade tenha sido modificada ou aperfeiçoada para o consumo, mediante processo de industrialização.[4]
Para elucidação, esboça-se abaixo sua regra-matriz de incidência tributária:[5]
REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA DO IPI
Antecedente
Consequente
Material
Espacial
Temporal
Pessoal (sujeito passivo)
Quantitativo (base de cálculo)
Desembaraço aduaneiro (art. 46, I, CTN)
Território aduaneiro
Momento do desembaraço aduaneiro
Importador ou equiparado (art. 51, I, CTN)
Valor aduaneiro somado do II, das taxas e dos encargos cambiais (art. 47, I, CTN)
Transferência onerosa do produto (art. 46, II, CTN)
Local da saída, no território nacional
Momento da saída do produto do estabelecimento
Industrial ou equiparado; fornecedor industrial ou equiparado (art. 51, II e III, CTN)
Valor da operação de saída (art. 47, II, CTN)
Como acima delineado, o IPI pode ter dois fatos geradores distintos: o desembaraço aduaneiro e a saída de produtos industrializados dos estabelecimentos definidos pelo art. 51 do CTN. Há ainda uma terceira hipótese, que embora prevista no art. 46, III, do CTN, não foi adotada pela legislação (Lei n. 4.502/64).
Postas a noções necessárias acerca tributo, parte-se à exposição da operação de importação por conta e ordem de terceiro, sobretudo no que lhe aproxima da segunda hipótese de incidência do IPI, prevista no art. 46, II, do CTN.
Nessa modalidade, a importadora – ou trading – atua como mera intermediária, importando a mercadoria em nome próprio, mas por conta e ordem do adquirente, que desde o princípio é seu verdadeiro dono. Seu conceito pode ser extraído da RFB n. 1861/2018:
Art. 2º Considera-se operação de importação por conta e ordem de terceiro aquela em que a pessoa jurídica importadora é contratada para promover, em seu nome, o despacho aduaneiro de importação de mercadoria de procedência estrangeira adquirida no exterior por outra pessoa, física ou jurídica.
§ 1º Considera-se adquirente de mercadoria de procedência estrangeira importada por sua conta e ordem a pessoa, física ou jurídica, que realiza transação comercial de compra e venda da mercadoria no exterior, em seu nome e com recursos próprios, e contrata o importador por conta e ordem referido no caput para promover o despacho aduaneiro de importação.
§ 2º O objeto principal da relação jurídica de que trata este artigo é a prestação do serviço de promoção do despacho aduaneiro de importação, realizada pelo importador por conta e ordem de terceiro a pedido do adquirente de mercadoria importada por sua conta e ordem, em razão de contrato previamente firmado, que poderá compreender, ainda, outros serviços relacionados com a operação de importação, como a realização de cotação de preços, a intermediação comercial e o pagamento ao fornecedor estrangeiro.
A operação é compreendida como prestação de serviço, e após o desembaraço aduaneiro, a mercadoria é remetida ao adquirente. Em muitos casos, após o referido desembaraço a mercadoria não passa realmente pelo estabelecimento da trading que presta o serviço, mas vai diretamente ao adquirente. Não obstante, em qualquer caso há a emissão de notas fiscais de entrada e de saída pela importadora, oriunda de dever instrumental.
II – Da não incidência do IPI na transferência de mercadoria da trading ao adquirente
Na remessa da trading para o adquirente após o desembaraço aduaneiro, ocorrida ao menos formalmente, a Receita Federal costumeiramente exige o recolhimento do IPI, por entender que há enquadramento na hipótese do inciso II, art. 46, do CTN, conforme se verifica na Solução de Consulta COSIT n. 30/2014.
Entretanto, a jurisprudência do STJ detém a exegese de que a “saída do estabelecimento” prevista no art. 46, II, do CTN, pressupõe a mudança de sua titularidade, ou seja, uma operação mercantil:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ART. 535 DO CPC/1973. VIOLAÇÃO. ALEGAÇÃO GENÉRICA. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. IPI. SAÍDA DO ESTABELECIMENTO DO CONTRIBUINTE. AUSÊNCIA. MERO DESLOCAMENTO DO PRODUTO PARA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. NÃO INCIDÊNCIA. [...]
3. O aspecto material do IPI alberga dois momentos distintos e necessários: a) industrialização, que consiste na operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para o consumo, nos termos do art. 4º do Decreto n. 7.212/2010 (Regulamento do IPI); b) transferência de propriedade ou posse do produto industrializado, que deve ser onerosa.
4. A saída do estabelecimento a que refere o art. 46, II, do CTN, que caracteriza o aspecto temporal da hipótese de incidência, pressupõe, logicamente, a mudança de titularidade do produto industrializado.
5. Havendo mero deslocamento para outro estabelecimento ou para outra localidade, permanecendo o produto sob o domínio do contribuinte, não haverá incidência do IPI, compreensão esta que se alinha ao pacífico entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, consolidado em relação ao ICMS, que se aplica, guardada as devidas peculiaridades, ao tributo sob exame, nos termos da Súmula do STJ, in verbis: "Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte".
6. Hipótese em que a sociedade empresária promove a detonação ou desmonte de rochas e, para tanto, industrializa seus próprios explosivos, utilizando-os na prestação dos seus serviços, não promovendo a venda desses artefatos separadamente, quer dizer, não transfere a propriedade ou posse do produto que industrializa.
7. In casu, a "saída" do estabelecimento dá-se a título de mero deslocamento até o local onde será empregado na sua atividade fim, não havendo que se falar em incidência de IPI, porquanto não houve a transferência de propriedade ou posse de forma onerosa, um dos pressupostos necessários para a caracterização da hipótese de incidência do tributo.
8. Recurso especial conhecido em parte e desprovido.
(REsp n. 1.402.138/RS, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 12/5/2020, DJe de 22/5/2020.)
Disso se extrai que, para a incidência tributária na circunstância, a mera saída da mercadoria não cumpre o critério material da regra-matriz, porquanto necessário que a saída se dê com transferência de propriedade ou posse de forma onerosa.
Trazendo essa interpretação ao caso da remessa do bem da trading ao adquirente após o desembaraço aduaneiro, como não ocorre revenda ou alteração de sua titularidade – pois desde o princípio o adquirente é o verdadeiro dono da coisa, tendo a adquirido de vendedor do exterior –, impossível que incida IPI.
O Tribunal Regional da 4ª Região (TRF4) tem reconhecido a impossibilidade de incidência na hipótese:
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS - IPI. OPERAÇÃO POR CONTA E ORDEM DE TERCEIRO. INEXISTÊNCIA DE OPERAÇÃO DE REVENDA DO IMPORTADOR POR CONTA E ORDEM PARA O ADQUIRENTE. NÃO INCIDÊNCIA DO IPI QUANDO DA SAÍDA DAS MERCADORIAS DO ESTABELECIMENTO DO IMPORTADOR. 1. Na importação por conta e ordem de terceiro (caso dos autos), o importador é mero prestador de serviços, contratado pelo terceiro para somente promover o despacho aduaneiro de importação. O importador presta esse serviço e encaminha as mercadorias importadas ao adquirente, que já era seu proprietário desde antes do despacho de importação, porque as adquiriu do vendedor estabelecido no exterior. 2. Ademais, a empresa importadora por conta e ordem de terceiro não pode ser equiparada a industrial nos termos do art. 4º da Lei nº 4.502/64, pois não realiza a importação diretamente, atuando como mera intermediadora. Não se trata, pois, de importador propriamente dito. 3. Logo, não incide IPI nas remessas promovidas pela trading importadora à impetrante, quando atuar como adquirente de mercadorias estrangeiras em operação de importação por conta e ordem de terceiro, pois não caracterizada operação de revenda. (TRF4, AC 5020645-76.2019.4.04.7200, 1ª Turma, Relator ANDREI PITTEN VELLOSO, julgado em 07/11/2024).
Em verdade, a operação de remessa, neste caso, consiste em parte da prestação do serviço da trading, que é mandatária do adquirente e não detém qualquer titularidade sobre a mercadoria, tratando-se de mera transferência entre estabelecimentos. Logo, é ilegal a exigência de IPI na hipótese, pois inexiste operação de revenda.
Isaque Tolentino Teixeira
OAB/SC 68.576
[1] Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: [...]
IV – produtos industrializados.
[2] PONTALTI, Mateus. Manual de Direito Tributário. 6. ed., rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2025.
[3] O conceito de industrialização pode ser extraído do art. 3º, parágrafo único, da Lei n. 4.502/64.
[4] PONTALTI, Mateus. Manual de Direito Tributário.
[5] A Regra-Matriz de Incidência Tributária é um modelo teórico desenvolvido pelo professor Paulo Barros de Carvalho, que visa a estruturação lógica dos critérios que definem se determinado fato gera obrigação tributária. De acordo com a escola, de ampla adesão, um tributo só é exigível quando atendidos todos os requisitos dessa estrutura normativa.