BANCO DE HORAS NEGATIVO: DISCUSSÃO SOBRE A (IM)POSSIBILIDADE DE DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO E DAS VERBAS RESCISÓRIAS
Em um cenário de constantes alterações nas relações de trabalho, especialmente após as medidas trabalhistas criadas para o enfretamento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus, surge questão relevante sobre a possibilidade de o empregado ficar “devendo” horas ao empregador em sistema de compensação por banco de horas e sobre a possibilidade de desconto dessas horas negativas.
O presente estudo tem como objetivo analisar a viabilidade do desconto de saldo negativo em folha de pagamento e das verbas rescisórias, o que faz com base na legislação e decisões judiciais relevantes que permeiam o tema.
Para tanto, inicialmente, cabe destacar que o instituto do banco de horas encontra previsão nos §§2º, 3º, 5º e 6º do artigo 59 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que preveem:
Art. 59. [...]
§2º Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.
§3º Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho sem que tenha havido a compensação integral da jornada extraordinária, na forma dos §§ 2o e 5o deste artigo, o trabalhador terá direito ao pagamento das horas extras não compensadas, calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão.
§5º O banco de horas de que trata o § 2o deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses.
§6º É lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês.
Denota-se dos destacados dispositivos legais, três possíveis formas de compensação de horas: (i) banco de horas para compensação no período de um ano, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; (ii) banco de horas para compensação no período máximo de seis meses, o que pode ser pactuado por acordo individual escrito; e (iii) regime de compensação de jornada dentro do mesmo mês, estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito.
Denota-se, ainda, que ao abordar sobre a compensação de horas, o legislador celetista não prevê explicitamente sobre a possibilidade de desconto das horas não compensadas, apesar de fazer prever o dever de pagamento das horas extras na hipótese de existência de saldo positivo do banco de horas por ocasião da rescisão contratual.
Calha ressaltar aqui sobre a Medida Provisória n.º 927, de 22 de março de 2020, que dentre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus, trouxe em seu artigo 14 o banco de horas com a seguinte redação:
Art. 14. Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, ficam autorizadas a interrupção das atividades pelo empregador e a constituição de regime especial de compensação de jornada, por meio de banco de horas, em favor do empregador ou do empregado, estabelecido por meio de acordo coletivo ou individual formal, para a compensação no prazo de até dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.
Observa-se que a Medida Provisória prevê o banco de horas “em favor do empregador ou do empregado”, o que permite interpretação no sentido de ser possível o intitulado “banco de horas negativo”, ou seja, de o empregado ficar “devendo” horas ao empregador, para compensação posterior. Tal possibilidade, no entanto, não se extrai da literalidade da redação da CLT, que não prevê a possibilidade de compensação de horas devidas pelo empregado.
A Medida Provisória teve eficácia limitada ao período de vigência, eis que não convertida em lei. Do mesmo modo que a CLT, a normativa não trouxe disposição sobre a possibilidade de desconto do empregado na hipótese de saldo negativo.
Sobre as possibilidades de descontos lícitos no salário do trabalhador, o artigo 462 da CLT elenca que é vedado ao empregador “efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo." Esse dispositivo reflete o princípio da intangibilidade salarial, que garante proteção ao salário do empregado.
Além disso, a Constituição Federal (CF) prevê no inciso VI do artigo 7º, que dentre os direitos dos trabalhadores está a “irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”.
Através dos breves destaques, atrelados, ainda, aos princípios da proteção ao trabalhador, do in dubio pro misero e da vedação à transferência dos riscos da atividade econômica para o trabalhador (conforme artigo 2º da CLT), a lacuna legal aqui identificada deve ser interpretada de maneira restritiva, isto é, como obstáculo para o desconto de horas negativas em sistema de compensação por banco de horas pactuado por acordo individual (art. 59, §5º, da CLT).
Em relação à instituição do banco de horas ou à definição de regras para sua execução por meio de acordo ou convenção coletiva, admite-se, contudo, entendimento contrário.
Isso porque o inciso XIII do artigo 7º da Constituição Federal assegura que são direitos dos trabalhadores a jornada de trabalho não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, “facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.
Soma-se a isso o contido no supramencionado artigo 462 da CLT, que prevê a norma convencional como uma exceção para permitir o desconto salarial. Além disso, o inciso II do artigo 611-A dispõe que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando dispuserem sobre o banco de horas anual.
Visto isso, é oportuno destacar neste estudo sobre a tese de repercussão geral (Tema 1.046) fixada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do ARE n. 1.121.633, que reconheceu a constitucionalidade de acordos e convenções coletivas que estabeleçam limitações ou exclusões de direitos trabalhistas, mesmo sem a indicação expressa de vantagens compensatórias, desde que sejam respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.
Com base em tal tese, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) julgou o Recurso de Revista nº 116-23.2015.5.09.0513, interposto em Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho da 9ª Região. A ação buscava impedir o sindicato e a empresa ré de firmarem instrumentos coletivos que autorizassem o desconto do saldo negativo do banco de horas após 12 meses ou nas verbas rescisórias, nos casos de pedido de demissão ou dispensa por justa causa.
No julgamento em questão, o TST ressaltou que vinha adotando o entendimento de invalidar cláusulas normativas que previam o desconto, com fundamento na ausência de previsão legal e para evitar a transferência dos riscos da atividade econômica ao trabalhador.
Entretanto, com a fixação da tese n.º 1.046, o STF conferiu maior relevância à negociação coletiva, reconhecendo sua legitimidade para limitar ou afastar determinados direitos trabalhistas. Ressalvou, contudo, que essa autonomia encontra limites nos direitos absolutamente indisponíveis, os quais são resguardados pela Constituição Federal, por tratados e convenções internacionais incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, bem como por normas infraconstitucionais que asseguram garantias mínimas de cidadania.
Com isso, o TST decidiu pela validade da norma coletiva que instituiu banco de horas com a possibilidade de desconto do tempo injustificadamente não trabalhado ao final de cada período de 12 (doze) meses ou nas verbas rescisórias em casos de pedido de demissão ou dispensa por justa causa, entendendo que a normativa não desrespeita direito indisponível, considerando a permissão contida no próprio texto constitucional, artigo 7º, incisos XIII e VI, da CF.
À vista do exposto, é possível compreender dos dispositivos legais que permeiam o tema, bem como das interpretações jurisprudenciais, que há permissão no ordenamento jurídico para o desconto de saldo negativo de banco de horas da remuneração e das verbas rescisórias nas hipóteses de pedido de demissão e de dispensa por justa causa, desde que previsto em norma coletiva.
Itajaí, 23 de maio de 2025.
Ariany Cristini dos Santos
OAB/SC 52.394