A (im)possibilidade de averbação do Contrato de Comodato na Matrícula Imobiliária
O presente parecer tem por finalidade analisar a viabilidade jurídica da averbação do contrato de comodato na matrícula de imóvel, à luz da atual legislação registral, em especial a redação conferida pela Lei nº 14.382/2022 ao artigo 246 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973), e dos fundamentos utilizados em decisão proferida pela 1ª Vara de Registros Públicos da Comarca de São Paulo.
Historicamente, os contratos de comodato, definidos no art. 579 do Código Civil como empréstimos gratuitos de bens não fungíveis — não integravam o rol de títulos passíveis de averbação ou registro na matrícula do imóvel, por não constituírem direitos reais. A Lei nº 6.015/1973, que rege os registros públicos, estabelecia em seu art. 167, inciso I e II, rol para registros e averbações, o que impedia a publicidade de relações meramente obrigacionais como o comodato.
Entretanto, a Lei nº 14.382/2022, ao alterar substancialmente a redação do artigo 246 da Lei de Registros Públicos, passou a permitir a averbação de fatos que, por qualquer forma, repercutam sobre os direitos reais registrados ou a situação jurídica do imóvel.
O novo artigo 246 da Lei nº 6.015/1973, com redação dada pela Lei nº 14.382/2022, dispõe que:
“Art. 246. Serão objeto de averbação, nas matrículas, todos os atos que, por qualquer forma, alterem ou possam alterar os registros feitos, ou que repercutam sobre os direitos reais registrados ou sobre a situação jurídica do imóvel.”
Essa modificação ampliou a possibilidade de averbações facultativas, incluindo aquelas que envolvem situações jurídicas não propriamente reais, mas que impactam direta ou indiretamente o imóvel e sua disponibilidade.
Em um caso concreto, ao se tentar averbar um contrato de comodato, o Oficial do 3º Registro de Imóveis da Capital de São Paulo fundamentou a recusa da averbação com base na ausência de previsão expressa para registro do comodato no art. 167, I, da LRP, alegando que, sendo o título não registrável, também não se aplicaria o art. 246.
No entanto, em recente decisão, a 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, ao julgar o processo nº 1078412-50.2022.8.26.0100, reconheceu expressamente a possibilidade de averbação de contrato de comodato na matrícula do imóvel. A magistrada responsável fundamentou sua decisão na atual redação do art. 246 e na necessidade de refletir a realidade fática do imóvel, promovendo maior publicidade sobre a posse direta exercida por terceiros.
Primeiramente, fundamentou sua decisão no reconhecimento de que, embora o comodato não seja registrável nos termos do artigo 167, I, da LRP, as averbações previstas no inciso II têm natureza acessória e exemplificativa (numerus apertus), admitindo o ingresso de títulos que retratem fatos ou relações jurídicas relevantes à situação do imóvel — ainda que não afetem diretamente a titularidade.
Salientou, ademais, que inexiste vedação legal à averbação do comodato, sendo a proibição prevista nas Normas de Serviço da Corregedoria de São Paulo (item 76.3, Cap. XX) restrita ao registro do contrato. Assim, ao distinguir registro de averbação, entendeu que a publicidade pretendida se adequa à finalidade da averbação como meio de dar conhecimento público à posse direta exercida por terceiro, conferida mediante negócio jurídico típico e válido.
A magistrada também se apoiou no artigo 54, §1º, da Lei nº 13.097/2015, segundo o qual não podem ser opostas a terceiros de boa-fé situações jurídicas não constantes da matrícula do imóvel. Tal dispositivo reforça o princípio da concentração, impondo a necessidade de que todas as circunstâncias relevantes à esfera jurídica do imóvel — inclusive a posse legítima exercida por terceiros — constem do fólio real para que possam produzir efeitos erga omnes.
No caso específico analisado, observou-se que o contrato de comodato continha cláusulas que atribuíam à comodatária a posse direta do bem, bem como obrigações relativas à conservação, uso e responsabilidade tributária (inclusive em atenção ao artigo 34 do CTN e artigos 582 e 584 do Código Civil). Tais disposições repercutem diretamente sobre a situação jurídica do imóvel e justificam, à luz do novo artigo 246 da LRP, a sua averbação como instrumento de segurança jurídica e publicidade.
A possibilidade de averbação do comodato contribui para a transparência nas transações imobiliárias, conferindo previsibilidade a investidores, financiadores e adquirentes, que terão ciência prévia da posse exercida por terceiro, evitando, assim, litígios possessórios e disputas contratuais.
A possibilidade de averbação do comodato contribui para a transparência nas transações imobiliárias, oferecendo segurança a investidores, financiadores e potenciais compradores, que passam a ter conhecimento prévio sobre a posse de terceiros no imóvel. Isso fortalece a previsibilidade das negociações e reduz o risco de litígios judiciais relacionados à ocupação do bem.
Diante do exposto, conclui-se que é juridicamente viável a averbação do contrato de comodato na matrícula do imóvel, desde que se comprove a transferência da posse direta e a existência de cláusulas que impliquem limitação ao domínio ou repercussão relevante sobre o uso, gozo ou disponibilidade do bem.
A interpretação sistemática dos artigos 246 da Lei nº 6.015/1973 e 54, §1º, da Lei nº 13.097/2015, aliada ao entendimento jurisprudencial mais recente, respalda a averbação como medida legítima, eficaz e em conformidade com os princípios da publicidade e da concentração registral, pilares da moderna técnica de segurança jurídica nas relações imobiliárias.
É o parecer.
É o parecer.
Itajaí/SC, 6 de março de 2025.
Mariane Fortunato Homes
OAB/SC 61.923