O presente parecer se justifica em razão de caso prático submetido à análise do escritório.
Trata-se de ação de usucapião em que a parte autora objetiva somar à sua posse a de que seus antecessores para ver declarada a prescrição aquisitiva em seu favor. A ação de usucapião foi ajuizada em 2009, tendo a parte autora alegado o exercício da posse mansa, pacífica, ininterrupta e com ânimo de dono desde 1993. Menciona que seus antecessores já ocupavam a área desde 1950.
Ocorre que a área usucapienda encontra-se inserida em área maior, que já foi objeto de diversas disputas judiciais, e alguns proprietários de áreas menores inseridas na área usucapienda já se insurgiram contra a posse da parte autora.
Assim, surgiu o questionamento: o ajuizamento de ações possessórias e petitórias envolvendo a área usucapienda interrompem a prescrição aquisitiva? Como e quando isso ocorre?
Para responder à questão, foi realizada pesquisa jurisprudencial junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Sabe-se que as Seções daquele tribunal são especializadas e que, portanto, a matéria usucapião é de atribuição/competência da Segunda Seção e de suas respectivas Turmas (Terceira e Quarta).
Abaixo, colacionam-se julgados da Terceira e da Quarta Turma da Segunda Seção do STJ sobre a interrupção da prescrição aquisitiva. Vejamos:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 211/STJ. AÇÃO POSSESSÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. NÃO INTERRUPÇÃO. 1. Cuida-se, na origem, de ação de usucapião de imóvel urbano. 2. A ausência de decisão do Tribunal de origem acerca dos argumentos invocados pelo recorrente em suas razões recursais impede o conhecimento do recurso especial. 3. Segundo a jurisprudência desta Corte, a citação efetuada em ação possessória julgada improcedente não é hábil à interrupção da prescrição aquisitiva. Precedentes. 4. Agravo interno no agravo em recurso especial não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AgInt no AREsp n. 1.863.294/RS, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/5/2022, DJe de 25/5/2022).
No caso concreto julgado nos moldes da ementa acima, tramitavam junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) ação de usucapião e ação de reintegração de posse. Ambas haviam sido julgadas improcedentes em primeiro grau de jurisdição.
Quando do julgamento da apelação pelo TJRS, foi reconhecida a prescrição aquisitiva e declarado o domínio do imóvel em favor da parte usucapiente. Em recurso especial, a parte ré da usucapião defendeu, entre outras coisas, que a citação na ação possessória interrompe o prazo prescricional, impedindo até o trânsito em julgado, a declaração da usucapião.
Ao analisar o caso, o Tribunal da Cidadania, por meio de sua Terceira Turma, consignou que o TJRS se alinhou à sua jurisprudência ao “entender que a citação efetuada em ação possessória julgada improcedente não é hábil à interrupção da prescrição aquisitiva” e, assim, manteve a procedência da ação de usucapião.
Abaixo, outro julgado para análise, agora proveniente da Quarta Turma do STJ:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. VIOLAÇÃO AO ART. 1.022 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. USUCAPIÃO. REJEIÇÃO. SÚMULA 7 DO STJ. FUNDAMENTOS NÃO ATACADOS. SÚMULA 283 DO STF. APLICAÇÃO DO TEMPO ABREVIADO DE USUCAPIÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356 DO STF. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROTELATÓRIOS. MULTA. AFASTAMENTO. SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. [...] 5. A jurisprudência desta Corte já se pronunciou no sentido de que, diferentemente do que acontece com a citação efetuada em ação possessória julgada improcedente, a qual não interrompe o prazo para a prescrição aquisitiva, se a ação proposta pelo proprietário visa, de algum modo, à defesa do direito material, como é o caso de ação reivindicatória fundada na propriedade do bem, deve-se reputar interrompido o prazo prescricional a partir da citação verificada nesse processo. [...] 8. Agravo interno não provido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.771.282/MT, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 27/9/2021, DJe de 29/9/2021, sem grifo no original).
O caso acima trazia em seu bojo o julgamento de ação reivindicatória com exceção de usucapião. No tribunal de origem – Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT) -, a exceção de usucapião foi rejeitada e o pedido reivindicatório julgado procedente. No tribunal superior, o mérito da questão não foi enfrentado, pois diversos foram os óbices suscitados para o desprovimento do agravo interno que objetivava o conhecimento do agravo em recurso especial.
No entanto, em que pese o Tribunal da Cidadania não tenha se debruçado sobre a questão jurídica arguida no mérito do recurso especial, a Quarta Turma do STJ sinalizou aos jurisdicionados que a jurisprudência daquela Corte “já se pronunciou no sentido de que, diferentemente do que acontece com a citação efetuada em ação possessória julgada improcedente, a qual não interrompe o prazo para a prescrição aquisitiva, se a ação proposta pelo proprietário visa, de algum modo, à defesa do direito material, como é o caso de ação reivindicatória fundada na propriedade do bem, deve-se reputar interrompido o prazo prescricional a partir da citação verificada nesse processo”.
Passemos à apreciação do próximo julgado, cuja ementa segue transcrita abaixo:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. AÇÃO DE USUCAPIÃO. ANTERIOR OPOSIÇÃO À POSSE. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. INVASÃO COLETIVA. CITAÇÃO DE TODOS OS INVASORES. DESNECESSIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. Em caso de invasão generalizada de imóvel, a sentença de procedência proferida em ação possessória anterior constitui verdadeira oposição à posse ad usucapionem dos invasores, ainda que não tenham sido nominalmente citados na demanda. 2. "Nas hipóteses de invasão de imóvel por diversas pessoas, não é exigível a qualificação de cada um dos réus na exordial, até mesmo pela precariedade dessa situação" (RMS 27.691/RJ, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, QUARTA TURMA, julgado em 05/02/2009, DJe de 16/02/2009). 3. Agravo interno provido para conhecer do agravo e dar parcial provimento ao recurso especial, com a determinação de retorno dos autos ao Tribunal de origem, a fim de que reexamine a causa à luz do entendimento do Superior Tribunal de Justiça. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp n. 580.885/RS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 8/3/2021, DJe de 26/3/2021, sem grifo no original).
A controvérsia instaurada no julgado acima colacionado cingia-se em determinar se a citação em ação de reintegração de posse julgada procedente poderia caracterizar oposição à posse capaz de obstaculizar o reconhecimento da usucapião de outros invasores, que não compunham o polo passivo da ação reintegratória.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que a procedência da ação de reintegração de posse não interfere na prescrição aquisitiva de quem não fez parte da demanda.
O Tribunal da Cidadania, contudo, deu outra interpretação ao caso, ao consignar que “em caso de demandas possessórias com multiplicidade de invasores, em razão da dificuldade de individualização de todas as pessoas, não se exige a citação de todos eles, o que, consequentemente, equivale dizer que, excepcionalmente, a decisão de reintegração de posse é válida em relação não só aos citados, mas a todos os outros invasores”.
Por último, outro julgado da Quarta Turma do STJ. Vejamos a ementa:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. FUNDAMENTAÇÃO, APENAS, NA ALÍNEA "C" DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. USUCAPIÃO. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. INTERRUPÇÃO DO RESPECTIVO PRAZO NÃO VERIFICADA. AÇÃO POSSESSÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE. JURISPRUDÊNCIA. ENUNCIADO N. 83 DA SÚMULA DO STJ. 1. Impõe-se o não conhecimento do presente recurso especial, assentado apenas no art. 105, III, "c", da CF/1988, porquanto a jurisprudência atual desta Corte, diversamente da tese invocada pelos agravantes, converge no sentido de que a citação efetuada em ação possessória julgada improcedente não interrompe o prazo para a prescrição aquisitiva (usucapião). Incidência do enunciado n. 83 do STJ. 2. Agravo regimental desprovido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp n. 1.010.665/MS, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 16/10/2014, DJe de 21/10/2014, sem grifo no original).
No caso acima posto, o tribunal de origem – Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) -, ao manter a sentença que declarou a usucapião, concluiu que a citação da parte contrária em ação de imissão de posse não teria o condão de interromper o curso da prescrição aquisitiva, tendo em vista que aquele feito teria sido extinto sem exame do mérito.
Ao apreciar o caso, a Quarta Turma do STJ concluiu que o entendimento firmado na instância de origem está em sintonia com a jurisprudência daquela Corte.
Da leitura dos julgados, constatou-se ser pacífico o entendimento da Segunda Seção do STJ de que:
(i) A citação em ação possessória só tem efeito interruptivo se julgada procedente; e,
(ii) A citação em ação petitória interrompe o prazo da prescrição aquisitiva independentemente do desfecho do processo.
Ou seja, não configura óbice à declaração da prescrição aquisitiva a citação em ação possessória ajuizada pelo proprietário contra o possuidor, que tenha sido julgada extinta ou improcedente. O lapso temporal necessário à declaração de usucapião somente será interrompido caso a ação possessória seja julgada procedente.
No caso posto à apreciação do escritório, que motivou a elaboração do presente parecer, foram ajuizadas ações de reintegração de posse pelos proprietários contra os possuidores. Todas foram julgadas extintas sem resolução do mérito ou improcedentes. Logo, o lapso necessário à declaração de prescrição aquisitiva não teve seu curso interrompido com a citação ocorrida nesses processos, pois a tutela jurisdicional não foi prestada ou, ainda que prestada, o foi em favor do possuidor, e não do proprietário.
Quando se tratar de ação petitória, no entanto, o cenário se altera, pois basta que tenha ocorrido a citação em ação proposta pelo proprietário que vise, de algum modo, a defesa do seu direito material para que a prescrição aquisitiva seja interrompida. Assim, pouco importa se a demanda petitória tenha sido julgada procedente improcedente, ou extinta, basta que se evidencie o inequívoco exercício do direito material pelo proprietário e a ocorrência da citação.
No caso em estudo, foram ajuizadas demandas reivindicatórias da propriedade ao longo do exercício da posse pela parte autora e por seus antecessores, mais especificamente em 2001 e 2009, bem como no período anterior a 1993. Apesar de tais demandas terem sido julgadas improcedentes ou extintas, o lapso necessário à declaração da prescrição aquisitiva foi interrompido com a citação nessas ações.
Era o parecer.