Esclarecimentos sobre a renúncia aos direitos hereditários que cause insolvência do herdeiro
Por Veridiana Toczeki Santos
02/05/2022
A renúncia dos direitos hereditários é negócio jurídico unilateral, direito potestativo do sucessor, previsto no art. 1.806 do Código Civil, sendo ato irrevogável, irretratável e definitivo, que significa que o herdeiro renunciante não receberá o que lhe seria de direito, sendo que seu quinhão será partilhado entre os demais herdeiros da mesma classe.Entretanto, quando essa renúncia for lesiva aos credores do herdeiro, poderão estes aceitar tais direitos em nome do renunciante, como dispõe o art. 1.813 do CC/2002, caso comprovem que a disponibilidade desses bens resultará na insolvência do devedor, frustrando a atuação da Justiça.Nesse contexto, caberia ao credor habilitar-se no processo de inventário ainda não finalizado, segundo os ditames do §1º do art. 1.813 do mesmo códex legal, no prazo de 30 (trinta) dias após o conhecimento da renúncia. A jurisprudência pátria caminha no mesmo sentido:
''EMENTA AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO SUCESSÓRIO. AÇÃO DE INVENTÁRIO. RENÚNCIA DA HERANÇA. DECISÃO EXTRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. HABILITAÇÃO E ACEITAÇÃO DA HERANÇA. DECADÊNCIA DO DIREITO CREDITÓRIO. NÃO OCORRÊNCIA. PEDIDO REALIZADO DENTRO DO PRAZO. HABILITAÇÃO DE CREDOR. POSSIBILIDADE. ARTIGO 1.813 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. A renúncia da herança é irretratável, irrevogável e definitiva, cabendo a habilitação da parte interessada no inventário, no lugar do herdeiro até o limite do quinhão de seu crédito. 2. Recurso conhecido e não provido. (TJ-PR - AI: 00226543320188160000 PR 0022654-33.2018.8.16.0000 (Acórdão), Relator: Desembargador Fábio Haick Dalla Vecchia, Data de Julgamento: 27/09/2018, 11ª Câmara Cível, Data de Publicação: 01/10/2018)''
Após quitadas as dívidas do renunciante, a renúncia prevaleceria quanto ao remanescente, devolvido aos demais herdeiros. Nesse sentido, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1252353/SP, entendeu que a renúncia a herança após a citação à alienação de bens configura fraude à execução, como se vê:
''PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FRAUDE DE EXECUÇÃO. DEVEDOR CITADO EM AÇÃO QUE PROCEDE À RENÚNCIA DA HERANÇA, TORNANDO-SE INSOLVENTE. ATO ATENTATÓRIO À DIGNIDADE DA JUSTIÇA, CARACTERIZANDO FRAUDE À EXECUÇÃO. INEFICÁCIA PERANTE O EXEQUENTE. PRONUNCIAMENTO INCIDENTAL RECONHECENDO A FRAUDE, DE OFÍCIO OU A REQUERIMENTO DO EXEQUENTE PREJUDICADO, NOS AUTOS DA EXECUÇÃO OU DO PROCESSO DE CONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. RENÚNCIA TRANSLATIVA. ATO GRATUITO. DESNECESSIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA MÁ-FÉ DO BENEFICIADO. IMPOSIÇÃO DE MULTA PELA FRAUDE, QUE PREJUDICA A ATIVIDADE JURISDICIONAL E A EFETIVIDADE DO PROCESSO. CABIMENTO. 1. Os bens presentes e futuros - à exceção daqueles impenhoráveis -, respondem pelo inadimplemento da obrigação, conforme disposto nos arts. 591 do Código de Processo Civil e 391 do Código Civil. Com efeito, como é o patrimônio do devedor que garante suas dívidas, caracteriza fraude à execução a disponibilidade de bens pelo demandado, após a citação, que resulte em sua insolvência, frustrando a atuação da Justiça, podendo ser pronunciada incidentalmente nos autos da execução, de ofício ou a requerimento do credor prejudicado, sem necessidade de ajuizamento de ação própria. 2. O art. 592, V, do Código de Processo Civil prevê a ineficácia (relativa) da alienação de bens em fraude de execução, nos limites do débito do devedor para com o autor da ação. Nesse passo, não se trata de invalidação da renúncia da herança, mas sim na sua ineficácia perante o credor - o que não implica deficiência do negócio jurídico -, atingindo apenas as consequência jurídicas exsurgidas do ato; por isso não há cogitar das alegadas supressão de competência do Juízo do inventário, anulação da sentença daquele Juízo, tampouco em violação à coisa julgada. 3. Assim, mesmo em se tratando de renúncia translativa da herança, e não propriamente abdicação, se extrai do conteúdo do art. 1.813, do Código Civil/02, combinado com o art. 593, III, do CPC que, se o herdeiro prejudicar seus credores,renunciando à herança, o ato será ineficaz perante aqueles que com quem litiga. Dessarte, muito embora não se possa presumir a má-fé do beneficiado pela renúncia, não há como permitir o enriquecimento daquele que recebeu gratuitamente os bens do quinhão hereditário do executado, em detrimento do lídimo interesse do credor e da atividade jurisdicional da execução. 4. "É o próprio sistema de direito civil que revela sua intolerância com o enriquecimento de terceiros, beneficiados por atos gratuitos do devedor, em detrimento de credores, e isso independentemente de suposições acerca da má-fé dos donatários (v.g. arts. 1.997, 1.813,158 e 552 do Código Civil de 2002). ( REsp 1163114/MG, Rel. MinistroLUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/06/2011, DJe01/08/2011) 5. Recurso especial não provido. (STJ, REsp 1252353/SP, Quarta Turma, Ministro Felipe Salomão, 21/05/2013).''
A referida decisão destaca que o próprio sistema de direito civil revela a intolerância com o enriquecimento de terceiros beneficiados por atos gratuitos do devedor em detrimento de credores. Além da ineficácia do ato, outra consequência para o sucessor renunciante pode ser a aplicação de multa por ato atentatório à dignidade da justiça, conforme determina o art. 774, incisos I e III, do CPC, com multa de até 20% sobre o valor da dívida, a ser revertida em favor do credor, por conta da tentativa de fraude ao processo executivo.Diante da previsão legislativa e das jurisprudências comentadas, a renúncia dos direitos hereditários pelo sucessor que possui dívidas capazes de levá-lo à insolvência, pode trazer prejuízos graves, além de possivelmente ocasionar mais morosidade ao processo de inventário. Por fim, destaca-se que, caso o inventário já tenha sido finalizado, ainda é possível o ingresso de ação própria pelo credor prejudicado (Ação Pauliana ), sem necessidade de comprovação do consilium fraudis, bastando a comprovação do dano, visando revogar a renúncia para posterior satisfação da dívida. Isso porque mesmo que não seja possível presumir a má-fé do beneficiado pela renúncia, não há como permitir o enriquecimento daquele que recebeu gratuitamente os bens do quinhão hereditário do executado, em detrimento do legítimo interesse do credor e da atividade jurisdicional da execução.