Restrições ao direito de arrependimento
O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu art. 49, caput, garante ao consumidor o direito de desistir do contrato sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial, pela internet, pelo telefone ou a domicílio, por exemplo. A desistência deverá ser manifestada no prazo de 7 (sete) dias a contar da assinatura do contrato ou do ato de recebimento do produto ou serviço.
Embora o legislador não tenha restringido o direito de arrependimento, a doutrina e a jurisprudência têm se manifestado casuisticamente por sua relatividade, sob pena de servir de salvo conduto a abusividades pelo consumidor.
Entre as hipóteses que se tem entendido pela relativização do direito de arrependimento encontram-se a de fornecimento de produtos perecíveis, de produtos personalizados sob encomenda e de arquivos digitais, seja porque não há possibilidade de retomar a comercialização do produto pelo fornecedor após a devolução, seja porque os referidos produtos já podem ser aproveitados assim que colocados à disposição do consumidor, e há, ainda, a hipótese da prestação de serviços quando o serviço já foi total ou parcialmente prestado.
A relativização do direito de arrependimento nesses casos decorre do princípio da boa-fé e da vedação ao enriquecimento sem causa.
A 1ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ao julgar o processo n. 20140111957966APC em 11/05/2016, que tratava da aquisição de álbuns de fotografia, ponderou nos seguintes termos:
“[...] A gênese teleológica do direito de arrependimento é a proteção do consumidor contra as práticas comerciais agressivas, verificadas geralmente nas vendas fora do estabelecimento comercial do fornecedor, destinando-se a resguardar que suas escolhas sejam feitas de forma segura e em conformidade com seus desejos e necessidades, mitigando sua vulnerabilidade pela ausência de contato direito com o produto ou serviço, e, considerando-se sua origem e o contexto histórico em que fora inserido no direito brasileiro, tem-se que não deve ser garantido em toda e qualquer compra feita à distância, mas somente nas hipóteses em que haja necessidade de se assegurar ao consumidor a consumação de aquisição consciente diante do desconhecimento do produto ou serviço ofertado. 3. A contratação de serviços de fotografia e imagem, pelas próprias peculiaridades que lhes são próprias, resguarda ao consumidor a aferição precisa e exata do serviço contratado, permitindo-lhe, após a verificação das características e qualidade do produto, traduzir manifestação condizente com suas expectativas e necessidades, donde inexoravelmente essa modalidade de contratação, pelas suas próprias peculiaridades e em se tratando de serviço personalizado e impassível de irradiar qualquer dúvida no momento da sua aquisição, não está inserida na órbita de incidência da regra inserta no artigo 49 do CDC, instituto que assegura prazo para reflexão e arrependimento ao consumidor contratante. 4. Ante as peculiaridades que lhe são imanentes, conquanto passível de ser objeto de pré-contratação, a contratação do fornecimento de serviços de fotografias insertas em álbuns ou avulsas e de filmagem somente é consumada no momento da apresentação do produto ao destinatário, que, de posse do material produzido, está livre para optar pela aquisição ou não de conformidade com seus exclusivos interesses e expectativas, tornando inviável que, optando o consumidor pela aquisição, desista, em seguida, da contratação, pois, de conformidade com o princípio da boa-fé objetiva, o direito de arrependimento não o socorre frente a simples e puro arrependimento desguarnecido de lastro material e jurídico subjacente. [...]” (DISTRITO FEDERAL, Tribunal de Justiça. Acórdão 944410, 20140111957966APC, Relator: ROMULO DE ARAUJO MENDES, Relator Designado: TEÓFILO CAETANO, Revisor: TEÓFILO CAETANO, 1ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 11/5/2016).
Em outro caso que também envolvia a contratação de serviços de fotografia, o Tribunal de Justiça Catarinense fez importante reflexão no sentido de que, após realizar a impressão das fotografias – ou seja, de produzir o produto -, ao fornecedor é impossível retornar ao status quo ante, e ainda que o “serviço fotográfico não possui controle contra cópias e demais fraudes”, de modo que entendeu pela inaplicabilidade do direito de arrependimento (SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça. Recurso Inominado 2013.400548-2, 4ª Turma de Recursos de Criciúma, julgado em 19.11.2013, rel. Maurício Fabiano Mortari).
Em agosto de 2012, deu entrada no Senado Federal o Projeto de Lei n. 281[1], que pretende alterar o CDC. Entre as alterações sugeridas, encontra-se o acréscimo de oito parágrafos ao art. 49, além da alteração de seu caput. Em novembro de 2015, quando foi remetido à Câmara dos Deputados para revisão, o projeto passou a ser denominado Projeto de Lei n. 3.514/2015[2], e já haviam ocorrido alterações em relação à versão original.
O projeto segue em tramitação e apesar de serem interessantes as alterações propostas, o legislador silenciou mais uma vez quanto às hipóteses de restrição do direito de arrependimento, na contramão do que outros ordenamentos jurídicos têm entendido ao redor do mundo.
A União Europeia (UE)[3], por exemplo, no art. 16º da Diretiva 2011/83/UE[4], traz casos em que o direito de arrependimento é limitado, ou seja, em que não pode ser invocado.
Um desses casos é vislumbrado nos contratos de prestação de serviços após terem sido eles integralmente prestados, ou, ainda que apenas iniciados, desde que o contrato imponha a obrigação de pagamento pelo consumidor e este tenha dado seu prévio consentimento ao início dos serviços.
Também não haverá direito de arrependimento quando do fornecimento de produtos personalizados ou realizados segundo as especificações do consumidor, ou ainda de produtos suscetíveis de deterioração ou expiração breve do prazo de validade.
Outra hipótese prevista na Diretiva 2011/83/UE é a de fornecimento de produtos lacrados que, após abertos, possam colocar em risco a saúde ou a higiene.
A União Europeia restringe, ainda, o direito de arrependimento quanto ao fornecimento de jornal, periódico ou revista, com exceção dos contratos de assinatura para o envio dessas publicações.
Não é possível ao consumidor arrepender-se, também, da contratação de fornecimento de conteúdos digitais que não sejam fornecidos num suporte material se a execução tiver tido início e se o contrato impuser ao consumidor a obrigação de pagar. O fornecedor, no entanto, deve obter previamente o consentimento do consumidor para que a execução tenha início durante o prazo de arrependimento, e que tenha o consumidor reconhecido que perde o seu direito de arrepender-se.
Considerada a profundidade que a matéria é tratada pela União Europeia, conclui-se que o legislador brasileiro, nos projetos de alteração do CDC, falhou ao deixar de consignar hipóteses em que o direito de arrependimento não poderá ser exercido.
É o parecer.
Itajaí/SC, 24 de agosto de 2023.
Gabriela Campos dos Reis
OAB/SC 45.543
[1] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n. 281, de 2012. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I e dispor sobre o comércio eletrônico. Brasília: Senado Federal. 2012. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4181391&ts=1630426495548&disposition=inline&_gl=1*1fqs7me*_ga*MTg5MDY2NDY2Ny4xNjg1ODI0NzQz*_ga_CW3ZH25XMK*MTY4NTgyNDc0My4xLjAuMTY4NTgyNDc1Mi4wLjAuMA. Acesso em: 20.08.2023.
[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 3.514, de 2015 (Do Senado Federal). Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para aperfeiçoar as disposições gerais do Capítulo I do Título I e dispor sobre o comércio eletrônico e o art. 9º do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), para aperfeiçoar a disciplina dos contratos internacionais comerciais e de consumo e dispor sobre as obrigações extracontratuais. Brasília: Câmara dos Deputados. 2015. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1414584. Acesso em: 20.08.2023.
[3] Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos (Holanda), Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia e Suécia.
[4] EUROPEAN UNION. Directive 2011/23/EU of the European Parliament and of the Council, of 25 October 2011. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?qid=1685899653751&uri=CELEX%3A02011L0083-20220528#M2-22. Acesso em 20.08.2023.