O Código de Defesa do Consumidor garante o
prazo de 30 e 90 dias para reclamação de vícios aparentes ou de fácil
constatação em produtos não duráveis e duráveis, respectivamente.
A lei consumerista não faz qualquer distinção entre o produto novo e o usado para fins de garantia, o que faz pressupor que a intenção do legislador era de que os prazos do art. 26 do Código Consumerista fossem aplicados a todo tipo de produto, novo ou usado.
Não raras vezes, contudo, o Poder Judiciário se depara com situações em que a aplicação literal da norma não atenderia aos critérios de justiça, fazendo-se necessária sua interpretação de acordo com a equidade, os princípios gerais do direito e, sobretudo, a intenção do legislador.
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB – Decreto-Lei n. 4.657/1942), em seu art. 5º, estabelece que “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
Dito isso, imagine-se na seguinte situação: Você é proprietário de uma garagem de automóveis e comercializa-os diariamente. Certo dia, um motorista de aplicativo vai ao seu estabelecimento para efetuar a compra de um veículo usado. Após a negociação, vocês celebram um contrato de compra e venda, e você entrega ao seu cliente, além do bem móvel adquirido, um termo de garantia nos moldes do que estabelece a legislação consumerista, garantindo ao consumidor o prazo de 90 dias para reclamação de qualquer vício existente no automóvel. Um mês e meio após a venda, o comprador retorna ao seu estabelecimento e exige a substituição do automóvel, sob a justificativa de que ele apresentou vício. Ao examinar o veículo, juntamente com um mecânico, você verifica que no período em que esteve com o veículo o consumidor rodou mais de 5.000km, e que o vício por ele constatado decorre de desgaste natural.
Questiona-se: A garantia poderia ser negada?
Cada caso é um caso, e deve ser analisado individualmente. Entretanto, a depender do vício que o veículo apresentou, entende-se que a garantia poderia sim ser negada.
O Tribunal de Justiça Catarinense já se manifestou no sentido de relativizar o caráter cogente da norma consumerista após analisar as nuances de casos concretos e entender que o reconhecimento da garantia não atenderia aos fins sociais da norma que a prevê.
Veja-se, por exemplo, o caso do consumidor que adquiriu de uma revendedora de usados um caminhão com 13 anos de uso e, aproximadamente, 950.000km rodados. Após sair do estabelecimento da revendedora e rodar menos de 10km, o bem apresentou vício[1].
No curso do processo, foi constatado que existia um contrato de compra e venda firmado entre as partes, no qual o consumidor renunciou a toda e qualquer garantia de defeitos ou vícios ocultos em decorrência da venda em valor inferior ao de mercado. Mesmo reconhecendo a aplicabilidade da norma consumerista ao caso, a Corte de Justiça não invalidou a cláusula que excluiu a garantia, pois sopesou as particularidades do cenário fático e entendeu como sendo razoável que não se possa esperar que um veículo usado e com alta quilometragem apresente as mesmas condições mecânicas de um novo, de modo que gastos com reparos são expectados.
A conclusão final do Tribunal de Justiça Catarinense, que levou em consideração ainda outras particularidades existentes no caso concreto, foi de que o problema constatado no caminhão decorreu de desgaste natural, o que afasta a garantia legal que incide sob o bem.
Em outro julgado[2], apesar de ter declarado inválida a cláusula contratual que dispensou a garantia legal no compromisso firmado entre as partes, a Corte de Justiça Catarinense ponderou que a camionete adquirida pelo consumidor contava 19 anos, sendo “certo que muitos problemas podem acontecer com o veículo, não sendo toda e qualquer avaria que deverá ser, mesmo no período de garantia legal, corrigida pelo vendedor, justo por não se tratar propriamente de um vício oculto, ou mesmo aparente, mas sim do desgaste natural inerente à situação da coisa, com quase duas décadas em circulação e quilometragem demasiadamente avançada: mais de 330 mil quilômetros rodados”.
E completou: “Isso não significa dizer que um bem móvel automotor usado não terá a mesma proteção legal garantida aos novos, mas eventual necessidade de troca ou reparo de peças desgastadas deve ser afastada do conceito de vício e, por consequência, resta ilidida a responsabilidade do fornecedor, mesmo durante a vigência da garantia legal”.
Ainda, nos termos do que escreveu o relator: “aquilo que representar não apenas um desgaste ínsito à condição da coisa, mas que efetivamente prejudique sua utilização, mesmo na condição de bem usado, tornando-o impróprio - ainda que temporariamente, isto é, até que se o conserte - para o fim a que se destina, aí sim, tem-se então um vício que, se ocorrido no período acobertado pela garantia, deve ser reparado pelo fornecedor”.
E afinal, garantia em produtos usados: existe ou não?
Sim, existe a garantia legal para produtos usados. Ela, porém, não é absoluta. O que significa que, quem adquire um produto usado não pode esperar o mesmo desempenho de um novo. Quem adquire um veículo usado, por exemplo, deve pretender utilizá-lo nos exatos termos de um usado, sabendo que melhoramentos, aprimoramentos e reajustamentos serão necessários. Assim, sua qualidade de “usado” deve ser determinante para estabelecer quais são os limites de seu adequado funcionamento.
[1] SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Apelação n. 5000918-86.2019.8.24.0040, rel. Cláudia Lambert de Faria, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 02-02-2021.
[2] SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça. Apelação n. 0300925-76.2017.8.24.0035, rel. Luiz Cézar Medeiros, Quinta Câmara de Direito Civil, j. 17-11-2020.