Ordem de intimação para impulso processual sob pena de extinção é ato de mero expediente ou ato jurisdicional privativo de magistrado?
Em caso posto à nossa apreciação, propusemo-nos a buscar o que têm entendido o Tribunal de Santa Catarina e outros de Estados vizinhos acerca da validade de ato ordinatório que determina a intimação da parte ativa para impulso processual sob pena de extinção. O objetivo era checar se havia ou não divergência entre os entendimentos dos tribunais.
Antes de expor os resultados da pesquisa, convém contextualizar o cenário fático processual que nos deparamos a fim de situar o leitor na problemática.
Trata-se de demanda que contém múltiplos réus. Foram realizadas algumas tentativas de citação, tendo alguns dos réus sido citados e outros não.
Houve, então, despacho judicial determinando a intimação da parte acionante para localização de endereços para citação, sem, contudo, qualquer menção à extinção do processo em caso de descumprimento da ordem.
Sem que novo despacho fosse prolatado, por força de comando emanado de ato ordinatório, foi expedido ofício para intimação pessoal da parte ativa, concedendo a ela o prazo de cinco dias para manifestação, sob pena de extinção do processo.
A parte autora foi intimada pessoalmente e deixou o prazo transcorrer em branco.
Sobreveio, então, sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, em que foi declarado o abandono processual pela parte ativa.
No contexto ora apresentado surgiu o questionamento: a expedição de ordem de intimação da parte ativa para manifestação sob pena de extinção, nos moldes previstos no art. 485, § 1º, do CPC, é ato jurisdicional privativo de magistrado?
Para responder ao questionamento, buscamos, de início, o que dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) acerca da delegação de atos a servidores. Em seu art. 93, XIV, encontra-se a seguinte normativa:
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: [...] XIV - os servidores receberão delegação para a prática de atos de administração e atos de mero expediente sem caráter decisório; [...].
Vê-se que o legislador constitucional autorizou que servidores recebessem delegação para prática de atos de mero expediente sem caráter decisório. Tais atos dizem respeito, em síntese, às atividades burocráticas destinadas ao andamento processual.
Na seara infraconstitucional, o art. 203, § 4º, do Código de Processo Civil (CPC), prevê:
Art. 203. [...] § 4º Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário.
Da leitura do dispositivo acima transcrito, observa-se que o legislador infraconstitucional não conceituou no que consistiram os atos meramente ordinatórios. No entanto, deu como exemplo “a juntada e a vista obrigatória”.
Os atos ordinatórios mencionados pelo art. 203, § 4º, do CPC, podem ser compreendidos como aqueles “atos de mero expediente” indicados pelo legislador constitucional no art. 93, XIV, da CRFB/1988.
Logo, os servidores possuem autorização constitucional para prática de atos de mero expediente sem caráter decisório, os quais independem de despacho e podem ser praticados de ofício e revistos a qualquer tempo pelo magistrado.
Mas, afinal, a expedição de intimação da parte ativa para manifestação sob pena de extinção, nos moldes previstos no art. 485, § 1º, do CPC, pode ser considerada um ato de mero expediente, sem caráter decisório, que independe de despacho autorizador e pode ser praticado de ofício pelo servidor?
O Tribunal de Justiça do Paraná, quando do julgamento da apelação n. 0021858-46.2018.8.16.0031, ocorrido em 03/11/2022, concluiu, em voto condutor do Desembargador Ricardo Augusto Reis de Macedo, que se revela “nula a intimação pessoal para fins de extinção do processo, sem resolução de mérito, por abandono, quando o mencionado ato processual é realizado por servidor da secretaria da vara de origem, uma vez que o ato que conduz à possibilidade de extinção do feito não pode ser classificado como meramente ordinatório, já que traz em seu bojo conteúdo decisório, do qual, inclusive, a parte sequer poderá interpor recurso, sendo de exclusividade do juiz proferir decisão interlocutória que reconheça a possibilidade de aplicação da penalidade”. Em acréscimo, ponderou-se que “para extinguir o processo por abandono de causa, a decisão que determina a intimação deve reconhecer a inércia da parte, o que somente pode ser feito por Juiz investido no poder jurisdicional diante das consequências dela decorrentes”.
Para o Tribunal de Justiça Paranaense, de acordo com entendimento posto por seu órgão fracionário, a ordem de intimação da parte para impulso processual sob pena de extinção somente pode ser emanada de Magistrado porque implica um reconhecimento de inércia, ou seja, ao analisar o processo o juiz valora se houve inércia e reconhecendo-a, determina a intimação nos moldes do art. 485, § 1º, do CPC, ou seja, reconhece a possibilidade de aplicação de uma penalidade.
O Tribunal de Justiça Catarinense, por outro lado, no julgamento da apelação n. 0308055-80.2018.8.24.0036, ocorrido em 01/12/2022, em voto condutor da Desembargadora Soraya Nunes Lins, compreendeu plenamente válido o ato ordinatório em que se determinou a intimação da parte para dar andamento ao feito sob pena de extinção, pois o referido ato não possui conteúdo decisório e apenas cumpre determinação legal prevista no § 1º do art. 485 do CPC.
Para a Quinta Câmara de Direito Comercial do TJSC, “tratava-se de mera intimação da parte exequente para dar prosseguimento ao processo, sob pena de extinção, ato sem qualquer conteúdo decisório, visto que apenas objetivava cumprir a providência prevista em lei como necessária em caso de inércia do autor em promover o andamento do feito”.
Em outro caso, onde se analisou a mesma temática, a Quarta Câmara de Direito Civil do TJSC deu interpretação diversa.
Trata-se da apelação n. 5003166-60.2021.8.24.0038, julgada em 25/08/2022, cujo voto condutor do acórdão é da lavra do Desembargador Luiz Felipe Schuch. Em sentido diametralmente oposto do julgado anteriormente analisado, a Quarta Câmara de Direito Civil do TJSC se posicionou no sentido de que a determinação de intimação da parte autora para promover o andamento do processo sob pena de extinção é ato jurisdicional privativo de magistrado.
Nesse sentido, resultou consignado no acórdão que, “ainda que louvável a iniciativa de se racionalizar os atos processuais para o célere andamento do processo, existem atos que somente ao Magistrado é imposto o dever de proferir, ou seja, são atos privativos do Juiz de Direito e que não podem ser delegados ao serventuário da Justiça”. Complementou-se, ainda, que “a imposição de eventual penalidade à parte em razão do não atendimento da ordem judicial possui natureza jurídica de despacho, ou mesmo decisão interlocutória, e, portanto, privativa de Magistrado”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) também apresenta posicionamentos divergentes entre seus órgãos fracionários, conforme se exemplifica abaixo.
A Décima Segunda Câmara de Direito Privado do TJSP, no julgamento da apelação cível n. 1002625-75.2015.8.26.0127, em 27/04/2021, consignou que “a extinção do processo de execução dependia da decisão prévia para então haver intimação da exequente a dar andamento ao feito. Não era possível adoção de atos pelo cartório, quando a decisão proferida não autorizou essa prática. Em outras palavras, não havia validade no ato ordinatório e na intimação postal realizados pela serventia, porque extrapolaram autorização contida no processo e estavam relacionados à extinção do processo”.
Por outro lado, a Vigésima Sétima Câmara de Direito Privado do TJSC, no julgamento da apelação n. 1000916-23.2020.8.26.0129, declarou que o ato ordinatório que determina a intimação da parte ativa para dar impulso processual sob pena de extinção é destinado apenas a dar andamento ao processo, desprovido de qualquer conteúdo decisório
Sem a pretensão de resolver a questão, o presente parecer buscou na jurisprudência possíveis respostas aos questionamentos formulados. Observou-se que há divergência de entendimento não apenas entre os tribunais, mas também entre os seus órgãos fracionários, que deverá ser equacionada pelos tribunais superiores.
É o parecer.
Gabriela Campos dos Reis
OAB/SC 45543