Está cada vez mais arraigado na nossa sociedade as ferramentas tecnológicas, muitas vezes trazendo comodidades para nossas necessidades, mas também gerando conflitos, que vez ou outra vão buscar uma resposta no poder judiciário.
Poderiam ser citadas diversas controvérsias envolvendo a tecnologia e o direito, porém, o presente parecer irá se limitar as locações por temporada através de aplicativos digitais.
A locação por temporada vem disposta na Lei 8.245/91 em seus arts.48 ao 50, possuindo como prazo máximo de contrato noventa dias e servindo como residência temporária para o locatário.
Em tempos não tão distantes, essa forma de locação era anunciada em jornais, revistas, nas imobiliárias e tendo como intermediador um corretor de imóveis. Atualmente, através dos aplicativos, como: Airbnb, quinto andar, dentre outras plataformas que surgem constantemente, a figura do corretor de imóveis e anúncios em jornais já não é mais tão comum.
Essa facilidade na locação de imóveis, vem gerando debates dentro dos condomínios edilícios, que usam da convenção condominial para proibir essa modalidade locatícia, pois, no entendimento deles, como essa modalidade possui como característica a alta rotatividade de pessoas a segurança dos condôminos restaria prejudicada.
Essa questão chegou ao Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina1 que em seu acórdão se pronunciou pela impossibilidade do condomínio em proibir as locações por temporada via aplicativo, prevalecendo o direito fundamental à propriedade, conforme segue:
''Civil e processual civil. ação declaratória de nulidade de convenção de condomínio c/c obrigação de não fazer. cláusula que proíbe a locação das unidades condominiais por intermédio de aplicativo de internet (AIRBNB). sentença de procedência. recurso do réu. sustentada a legalidade da alteração da convenção condominial ao argumento de que a locação via aplicativos desvirtua a finalidade residencial do edifício. alegação de que a alta rotatividade de pessoas estranhas no condomínio ameaça a segurança e bem-estar dos moradores e funcionários. tese de que o direito de propriedade do condômino não é absoluto e deve respeitar as normas estabelecidas pela assembleia condominial. insubsistência. PRÁTICA QUE NÃO CONFIGURA CONTRATAÇÃO DE HOSPEDAGEM, TAMPOUCO DESVIRTUA A FINALIDADE RESIDENCIAL DO CONDOMÍNIO. ADEMAIS, RISCO À SEGURANÇA E AO SOSSEGO DOS DEMAIS CONDÔMINOS NÃO DEMONSTRADO. PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À PROPRIEDADE (ART. 5º, CAPUT E XXII DA CF) E DO DIREITO INDIVIDUAL DO CONDÔMINO DE USAR, FRUIR E LIVRE DISPOR DA UNIDADE (ART. 1.335, I DO CC). fixação de honorários recursais. sentença mantida. recurso desprovido.''
Já em sentido contrário entendeu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo2, assim segue:
''CONDOMÍNIO EDILÍCIO - AÇÃO ANULATÓRIA DE DECISÃO DE ASSEMBLÉIA, C/C OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER, COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA - DEMANDA DE CONDÔMINO EM FACE DE CONDOMÍNIO - ARGUIÇÃO DE QUE FORAM EDITADAS REGRAS INTERNAS QUE INVIABILIZAM A LOCAÇÃO POR TEMPORADA DAS UNIDADES AUTÔNOMAS – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA – LOCAÇÃO POR CURTOS PERÍODOS, ATRAVÉS DE AIR BNB OU OUTRO SISTEMA, CARACTERIZAM SERVIÇO DE PENSÃO/HOTELARIA, FINALIDADE COMERCIAL – PREVISÃO NA CONVENÇÃO CONDOMINIAL E NO REGULAMENTO INTERNO DE USO EXCLUSIVAMENTE RESIDENCIAL – RECURSO NÃO PROVIDO. A assembleia extraordinária decidiu sobre a proibição de locação por temporada, pois a Convenção Condominial e o Regulamento Interno já previam que o uso do imóvel é exclusivamente residencial. Essa nova modalidade de locação adotada pela autora, por períodos muito curtos de tempo, não pode ser considerada como locação por temporada comum, pois se assemelha à finalidade hoteleira, ou de pensão, com cunho comercial. Geralmente é feita por meio de aplicativo AIR BNB, BOOKING, ou outros, e tem violado os direitos dos outros moradores ante os inconvenientes causados. Improcedência da ação mantida.''
Entendeu o Tribunal Paulista que as locações por meio da plataforma Airbnb ou similares caracteriza como serviço de pensão/hospedagem, não sendo permitida ante a finalidade residencial do condomínio.
Desta forma, a presente controvérsia chegou ao Superior Tribunal de Justiça através do REsp 1.819.075 – RS. O Relator Min. Luis Felipe Salomão proferiu seu voto3, no sentido de:
"[...]não ser possível a limitacão das atividades locatícias pelo condomínio residencial porque as locacões via Airbnb e outras plataformas similares não estariam inseridas no conceito de hospedagem, mas, sim, de locação residencial por curta temporada. Além disso, não poderiam ser enquadradas como atividade comercial passível de proibicão pelo condomínio[...]”
Apesar do entendimento do Relator, no julgamento que aconteceu no dia 20/04/2021, os Ministros que compõem a quarta turma do STJ divergiram e negaram provimento ao recurso. Em seu voto o Min. Raul Araújo4 destacou que:
“Assim, o direito do proprietário condômino de usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel, nos termos dos artigos 1.228 e 1.335 do Código Civil de 2002 e 19 da Lei 4.591/1964, deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício[...]”
Os demais Ministros acompanharam Raul Araújo no sentido de que os condomínios possuem autonomia para proibir a locação por meio das plataformas digitais, por entenderem que esse sistema de locação seria um contrato atípico de hospedagem.
Assim sendo, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça permitiu que os condomínios, apesar dos direitos concedidos ao proprietário no art.1.228 do Código Civil, usar, gozar, dispor e reaver do poder de quem injustamente a possua ou detenha, proíbam as locações por meio das plataformas digitais, assim, restringindo o direito do proprietário de gozar da coisa.
1BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação nº.5000710-56.2019.8.24.0023. Rel. Marcus Tulio Sartorato. Terceira Câmara Civil.
2BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação nº 1004594-06.2019.8.26.0477; Relator (a): Paulo Ayrosa; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado.
3BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.819.075 – RS. Disponível em:
4BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.819.075 – RS. Disponível em: