O Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) é um programa nacional de financiamento estudantil voltado à educação superior de estudantes matriculados em instituições de ensino não gratuitas aderentes ao programa, na forma da Lei n. 10.260/01.
Dado o acometimento da pandemia do COVID-19 no país e os altos índices de inadimplentes computados no FIES à época, foi editada a Medida Provisória (MP) n. 1.090/2021, no objetivo de amparar os beneficiários do programa que o tivessem aderido até o segundo semestre de 2017 e estivessem inadimplentes.
A medida editada pelo Governo Federal contemplou os beneficiários inadimplentes há no mínimo 90 dias, progredindo percentualmente nos descontos até os com mais de 360 dias de atraso nos pagamentos. Destaca-se que apenas os inadimplentes foram atingidos pelo dispositivo, havendo vedação expressa à sua aplicação aos que não possuíssem dívidas ativas (art. 5º, § 2º, III).
Estudantes que estivessem com atraso superior a 360 dias e que estivessem inscritos no CadÚnico ou que tivessem recebido auxílio-emergencial receberam descontos de até 92% sobre o valor consolidado da dívida; os demais financiados, desconto de até 86,5%.
Quanto aos que estivessem com atraso superior a 90 dias e inferior a 360, para pagamento à vista estabeleceu-se desconto total dos encargos e 12% do valor principal; para pagamento parcelado, em até 150 vezes mensais e sucessivas, com redução total de juros e multas.
Posteriormente, a medida provisória foi convertida na Lei n. 14.375/2022, atualmente vigente, que trouxe nova disciplina à matéria e seguiu se limitando a alcançar somente créditos contratados até o segundo semestre de 2017 (art. 2º). As principais mudanças foram o aumento do percentual de desconto aos inadimplentes com atraso superior a 360 dias e inscritos no CadÚnico ou que tenham recebido auxílio-emergencial durante a pandemia, de 92% para 99%, e a redução do percentual para os demais financiados, de 86,5% para 77%.
Ao contrário do diploma provisório originário, na lei em questão houve disposição voltada aos contratos adimplentes, no sentido permitir-lhes o desconto de 12% sobre o valor devido restante para pagamento à vista (art. 13). A adição merece reconhecimento, mas não trouxe grande vantagem, visto que, em tese, quem recorre ao FIES não detém condições de arcar com o valor normal de um curso de ensino superior, tampouco em parcela única.
Assim, inconteste que os beneficiários inadimplentes foram contemplados com descontos largamente superiores, o que gerou grande discussão no cenário jurídico nacional. Identificou-se certa “vantagem” na inadimplência, que tem como recompensa os descontos legais.
Pois bem, a força motriz da aplicação dessas mudanças se encontra no princípio da isonomia, que prima pela igualdade dos indivíduos perante a lei, considerando suas condições diferentes, de forma que garanta maior equidade nas relações jurídicas.
A ideia por trás da lei pautou-se, segundo o dispositivo, nisso. Ocorre que a adoção de tratativa tão diversificada para indivíduos que contemplam o mesmo tipo de benefício, que é voltado a uma mesma classe social, ou seja, pessoas semelhantes no aspecto econômico, hasteia a discussão acerca da razoabilidade e proporcionalidade da medida no sentido de ser isonômica ou não.
Trata-se de benefício que alcança pessoas, em regra, da mesma classe social, o qual, por si só, é medida que visa maior equidade no acesso ao ensino superior. A diferenciação quanto à forma de pagamento dos beneficiados com base em critérios simplistas como o da mera inadimplência, e em descontos tão consideráveis, é visto para alguns como um distanciamento da ordem isonômica constitucional.
Isso posto, parte-se ao plano prático, no qual demandas têm sido ajuizadas para buscar a concessão dos descontos concedidos aos inadimplentes pela Lei n. 14.375/2022 também aos adimplentes, embasadas sobretudo na ótica de que o princípio da isonomia deve ser aplicado de modo a não diferenciar os beneficiários do FIES simplesmente pelo critério da inadimplência.
Contudo, a exegese que tem sido adotada pelos tribunais é a de não conceder os descontos legalmente previstos aos que não se adequem nos critérios de concessão estabelecidos nos respectivos diplomas. Veja-se:
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. FIES. PEDIDO DE REVISÃO DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO ESTUDANTIL COM O DESCONTO DA MP 1.090/2021. INAPLICABILIDADE. NÃO CUMPRIMENTO DOS REQUISITOS PREVISTOS NA MP 1.090/2021. 1. Caso em que autora pretende a aplicação da legislação do FIES para revisão de seu contrato de financiamento estudantil. No entanto, tendo em vista não se tratar de beneficiária inadimplente, a autora não se enquadra nas hipóteses de transações resolutivas previstas na MP 1.090/2021. 2. De outro lado, cabe frisar que, em termos gerais, não existe um direito subjetivo à renegociação do saldo devedor. Essas são questões que se encontram na esfera de interesse e conveniência da administração do sistema, que não podem ser impostas pelo Poder Judiciário, sob pena de interferência indevida, especialmente porque não há qualquer alegação de conduta ilegal ou abusiva. 3. Apelo desprovido. (TRF4, AC 5002546-20.2022.4.04.7114, TERCEIRA TURMA, Relator MARCOS ROBERTO ARAUJO DOS SANTOS, juntado aos autos em 14/02/2023).
Ainda:
(...) Com efeito, o que autora pretende, conforme inclusive se depreende da sua peça inicial, é aplicação da legislação do FIES mais benéfica para revisão de seu contrato de financiamento estudantil, uma vez que, tendo em vista não se tratar de beneficiária inadimplente, a mesma não se enquadra nas hipóteses de transações resolutivas previstas na MP 1.090/2021. De igual sorte, a parte autora não demonstrou a iminência de inscrição em cadastros negativos de crédito, uma vez que, pelo que se depreende dos autos, a autora sequer se encontra inadimplente com as prestações do FIES, o que afasta o requisito do periculum in mora. Assim sendo, tenho que não está suficientemente demonstrada a probabilidade de direito, tampouco presente o periculum in mora que pudesse ensejar a antecipação da tutela sem o estabelecimento do devido contraditório." A decisão merece ser mantida, estando de acordo com legislação e jurisprudência aplicáveis à espécie. Os argumentos da parte agravante não são capazes de desconstituir sua bem lançada fundamentação. Ante o exposto, indefiro o pedido. Intimem-se, sendo a agravada, para apresentar contrarrazões (artigo 1.019, II, CPC). (TRF4, AG 5027632-92.2022.4.04.0000, TERCEIRA TURMA, Relatora MARGA INGE BARTH TESSLER, juntado aos autos em 22/06/2022).
Verifica-se que as decisões judiciais recentes são harmônicas ao entendimento apresentado (vide também Recurso Cível n. 5001992-85.2022.4.04.7114/RS e Recurso Cível n. 5002814-65.2022.4.04.7117/RS), de modo que, atualmente, conclui-se pela inviabilidade da adoção de ação judicial buscando a flexibilização dos descontos concedidos legalmente aos inadimplentes do FIES para que alcancem também os adimplentes.
Contudo, cabe levantar que se trata de tema relativamente recente, passível de alteração interpretativa e que inclusive está sendo tema de diversos projetos de lei que visam alterá-lo.
Itajaí, 23 de junho de 2023.
ISAQUE TOLENTINO TEIXEIRAOAB/SC 68.576