Trata-se de estudo jurídico acerca do projeto de Lei 24/2023 que atualmente tramita na Câmara de Vereadores de Itajaí e que possui como escopo central a criação de diretrizes urbanísticas para a implantação de condomínios de lotes e casas no Município de Itajaí/SC, sua correlação com o PA 09.2023.00008495-3, exarado pela 10ª Promotoria de Justiça da Comarca de Itajaí/SC e emendas substitutivas apresentadas.
Em primeiro lugar, adianta-se que a grande celeuma é a a definição de qual a legislação federal que será utilizada como sustentáculo ao desenvolvimento dos empreendimentos denominados “condomínios de lotes”. Para tanto, fundamental que se faça uma breve retrospectiva da legislação brasileira voltada à incorporação imobiliária e ao parcelamento do solo.
i) Evolução Legislativa e Conceitos
No Brasil, a incorporação imobiliária e o parcelamento do solo sempre caminharam em paralelo, com legislações própria que representam duas sistemáticas diferentes de exploração da propriedade.
Enquanto a incorporação imobiliária teve como primeira semente o Decreto 5.481/1928, posteriormente revogado pela Lei 4.591/64, o parcelamento do solo urbano foi inicialmente regulamentado pelo DL 58/1937, posteriormente revogado, no que se refere ao ato de parcelar o solo urbano, pela Lei 6.766/79.
Enquanto a legislação voltada à incorporação imobiliária cuida da proteção de futuros condôminos por ocasião do recebimento das unidades autônomas a serem incorporadas e possui como elementos essenciais[1] a necessidade de construção e combinação de propriedades comuns e exclusivas, aquela destinada ao parcelamento do solo versa apenas sobre propriedades exclusivas é caracterizada pela subdivisão de gleba em lotes que, no caso de loteamento, culminará com a abertura, modificação ou ampliação de espaços públicos, como vias de circulação, logradouros públicos, prolongamentos, dentre outros.
Assim, possível dizer que em relação ao destinatário final, diferenciam-se as legislações da incorporação imobiliária e do parcelamento do solo, no que diz respeito às obrigações do empreendedor. Afinal, enquanto o incorporador deve construir áreas comuns e privativas para os adquirentes, aquele loteador precisa tão somente viabilizar com que os adquirentes possam futuramente construir, por sua conta e risco, nos imóveis objeto do parcelamento do solo.
É por esta razão que a lei de incorporação imobiliária obrigará que o incorporador construa e atribua frações ideais da integralidade da gleba a cada um dos destinatários finais do empreendimento de acordo com a proporção das propriedades exclusivas perante o empreendimento.
Isso significa dizer que a preocupação da legislação voltada à incorporação imobiliária é a de criar obrigações de entrega de áreas construídas aliadas a normas de utilização do espaço comum. Tal espaço comum será de propriedade daqueles que titulares das frações ideais (exclusivas) do condomínio.
Por outro lado, vê-se de forma clara que a legislação destinada ao parcelamento do solo tem como escopo a mera disponibilização de uma área em que o futuro adquirente possa realizar qualquer tipo de edificação sem nenhuma correlação com outro adquirente daquela gleba parcelada.
Não por outra razão a responsabilidade do incorporador será por toda a construção realizada e regras condominiais criadas, tanto no que tange à parte exclusiva como naquilo que se refere à parte comum; já a responsabilidade do loteador restringir-se-á, perante o destinatário final, apenas à usabilidade de determinada área individualizada.
Em paralelo, em relação à gleba, diferenciam-se as Leis 4.591/64 (incorporações imobiliárias) daquela 6.766/79 (parcelamento do solo) quanto à permanência, ou não, da gleba como um todo.
Nas incorporações imobiliárias não há uma divisão da gleba, por outro lado, no parcelamento do solo uma gleba será dividida em outras menores, criando-se, ou não, novas vias públicas.
Neste ponto, didática lição acerca desta diferenciação de ambos os institutos em obra de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[2]:
O parcelamento do solo consiste na divisão de uma gleba (porção grande de
terra) em lotes (porções menores de terra). É fatiar o solo em lotes. Quando se
aproveita o sistema viário existente, o parcelamento do solo é batizado de
desmembramento. Quando, porém, se criam vias de circulação, o parcelamento é
designado de loteamento (art. 2º, Lei 6.766/79).
Em contrapartida, no condomínio (Lei 4.591 e Código Civil/2002), não há parcelamento do terreno, remanescendo íntegra a gleba originária. Todavia, por convenção, institui-se um condomínio pro diviso, dispondo que naquela imóvel haverá partes que serão de propriedade comum e outras de titularidade exclusiva de cada um dos condôminos, havendo o fracionamento do solo em partes ideais de propriedade e vinculadas, por ficção jurídica, a cada uma das partes exclusivas (unidades autônomas).
Em síntese, o que se percebe é que na incorporação imobiliária aquela gleba original permanecerá intacta, do mesmo tamanho e porte, sem que seja parcelada. O que mudará naquela gleba, com a incorporação imobiliária realizada, é o formato de sua utilização.
O que altera é que, uma vez realizada a incorporação imobiliária e instituído o condomínio, aquela gleba original terá o uso/destinação ali convencionado. O número de pessoas que residirão naquela incorporação, por exemplo, terá pouquíssima variação porque o empreendimento não mais comportará um aumento. Há, neste caso, o esgotamento da propriedade com um direcionamento praticamente final da sua função social.
Por sua vez, no parcelamento do solo poderão os adquirentes dos lotes, num futuro, utilizar seu imóvel de variadas formas, inclusive com a própria incorporação imobiliária, e, por isso, sua forma de uso poderá sofrer substancial alteração.
A diferença entre os institutos não para por aí, já que em relação à administração pública, a responsabilidade e o custo alteram de forma substancial.
Nos casos de parcelamento do solo, toda a área que não fica como de propriedade exclusiva do adquirente, deverá ser custeada e mantida pelo Município. Isto significa dizer que terá o Município que manter as ruas, a iluminação pública, a segurança, o saneamento e todos os outros serviços públicos para cada um dos lotes que estão fisicamente dentro daquela gleba maior porque se tratam de áreas e bens públicos.
Por outro lado, a incorporação imobiliária afasta a necessidade de custeio por parte da administração pública de toda a área interna daquela gleba em que instituído o condomínio pro diviso.
Como possível observar, o ato de parcelar o solo e aquele de incorporar um imóvel possuem abissais diferenças e consequências, razão pela qual não podem ser confundidos, sob pena de inviabilizar a realização de qualquer um dos empreendimentos. Isto é, aplicada a Lei 4.591/64 ao loteador, seu negócio será inviabilizado. Ao mesmo tempo, se aplicada a lei 6.766/79 ao incorporador, não haverá nenhuma chance deste prosseguir com suas iniciativas.
Trazidas estas iniciais lições, cabe uma análise detalhada acerca da natureza jurídica e das regras aplicáveis ao condomínio de lotes, coisa que será tratado no tópico seguinte.
ii) O Condomínio de Lotes
Ao mesmo tempo que o instituto da incorporação imobiliária visa a entrega de um empreendimento formado por partes comuns e privativas efetivamente construído, o parcelamento do solo visa a entrega de fatias de terra sem qualquer edificação sobre elas.
Logo, à primeira vista, impossível seria criar uma incorporação imobiliária e o consequente condomínio sem qualquer construção[3], ou, ao mesmo tempo, um loteamento que mantivesse áreas públicas restritas àqueles proprietários de fatias da terra da gleba maior.
O direito não pode fechar os olhos ao desenvolvimento social e fato é que mesmo sem um instituto apropriado, foram criados, inclusive em Itajaí/SC, inúmeros condomínios de lotes e/ou loteamentos fechados, cada um, importa dizer, com uma fórmula diferente.
Existem condomínios comuns, clubes de recreio e até associações formadas com o escopo de implementar um objetivo simples: um local fechado e seguro, com áreas comuns agradáveis àqueles que ali pretendem constituir residência, mas sem ser um edifício vertical, de modo que cada um dos moradores pudesse construir uma residência da forma que melhor lhe aprouver, respeitados critérios determinados pela administração pública e pelos demais moradores daquele local.
Não foi por outro motivo que a Lei Federal 13.465/17 criou instituto denominado “condomínio de lotes”, incutindo o art. 1.358-A dentro do Código Civil de 2002. É a íntegra do artigo:
Art. 1.358-A. Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)
§ 1º A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)
§ 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes: (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)
I - o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística; e (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
II - o regime jurídico das incorporações imobiliárias de que trata o Capítulo I do Título II da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o empreendedor ao incorporador quanto aos aspectos civis e registrários. (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)
§ 3º Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor. (Incluído pela Lei nº 13.465, de 2017)
Da redação do artigo criado, vê-se de forma clara que o instituto faculta a criação de um lote (ou gleba), sem construção, com áreas comuns e privativas, tal qual ocorre na incorporação imobiliária.
A diferença, deve-se dizer, é que fica viabilizada a construção apenas das áreas comuns, sem necessidade de efetivar-se, por parte do empreendedor, a construção das áreas privativas.
Exatamente por esta razão é que a lei dispõe em seu parágrafo segundo que o regime jurídico a ser aplicado ao Condomínio de Lotes é aquele da incorporação imobiliária previsto na Lei 4.591/64.
Como se trata de instituto relativamente novo e que menciona a palavra “lote”, fato é que algumas dúvidas foram postas até mesmo pela doutrina acerca da aplicabilidade, ou não, da Lei 6.766/79. Para deixar a questão mais clara, a Lei 14.382/2022 foi editada a fim de finalizar o debate e impor a Lei 4.591/64 como aquela a servir de base fundamental aos condomínios de lotes.
De uma forma ou de outra, penso que não há como existir dúvidas acerca da questão porque em simples leitura do caput do artigo 1.358-A, pode-se extrair que não se fala em criação de novos terrenos/lotes/glebas, mas, sim, da possibilidade de criação de um condomínio pro diviso com áreas comuns e privativas, tal qual ocorre com a incorporação imobiliária.
Dito de outra maneira, o condomínio de lotes é um fracionamento, e não parcelamento, de uma gleba. Com o advento do art. 1.358-A do Código Civil de 2002, nos dizeres de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald[4]:
[...] torna-se viável a incorporação imobiliária destinada a venda de lotes no âmbito de um condomínio que se submeterá às regras e princípios previstos no Código Civil (art. 1331 a 1.358-A) e, no que couber, à Lei 4.591/64.
Neste ponto, uma lição que precisa ser destacada é aquela de Luiz Antônio Scavone Júnior[5], quando dispõe que: “legalmente, só há loteamento ou desmembramento se a atividade de parcelar o solo urbano extrair-se uma subdivisão de gleba em lotes”.
Assim, como no condomínio de lotes não há divisão de glebas em lotes menores, tecnicamente é equivocado afirmar que a criação de um condomínio de lotes caracterizaria o parcelamento do solo.
iii) O condomínio de lotes e a Lei 6.766/79
Verificada a inexistência de parcelamento do solo nos condomínios de lotes, a fim de aparar qualquer aresta se torna relevante explicar, então, por qual razão e qual o fundamento de ter a Lei 13.465/2017 realizado duas aventuras ao mencionar o condomínio de lotes dentro da Lei 6.766/79.
De pronto adianta-se que numa análise apressada poder-se-ía imaginar que ao se referir e alterar lei conhecida como de parcelamento do solo, seria o condomínio de lotes mais uma forma de parcelar-se o solo.
No entanto, observado o ordenamento como um todo, e principalmente as diretrizes essenciais da Lei 6.766/79, vê-se que, já em seu art. 2º[6], dispõe de forma objetiva que os critérios gerais da lei apenas serão aplicados em caso de divisão da gleba.
Como já mencionado acima, numa detida análise impossível se ter esta conclusão porque ao instituir-se um condomínio de lotes não há a divisão de um mesmo terreno em outros menores, mas apenas o fracionamento de um só em várias partes de um mesmo todo para seu melhor aproveitamento.
Não há como se negar que ao criar-se um condomínio de lotes uma área será objeto da realização de um empreendimento que trará consequências e maior número de pessoas/usuários ao local onde se encontra.
Tal efeito, contudo, não difere da incorporação imobiliária comum, afinal, também num só imóvel será erigido um empreendimento que certamente culminará em acréscimo do número de pessoas em determinada localização.
A diferença aqui é o tamanho geográfico do terreno que servirá ao empreendimento e o impacto que poderá ocorrer, caso realmente não tomada a devida atenção, na mobilidade pública.
É por esta razão que – com atecnia – o legislador incluiu no art. 4º da Lei 6.766/79 o parágrafo 4º, que dispõe que:
No caso de lotes integrantes de condomínio de lotes, poderão ser instituídas limitações administrativas e direitos reais sobre coisa alheia em benefício do poder público, da população em geral e da proteção da paisagem urbana, tais como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros.
Como se pode observar, exatamente no capítulo voltado às questões urbanísticas da Lei 6.766/79, entendeu o legislador pertinente criar um critério específico para o condomínio de lotes autorizando o Município a criar limitações administrativas para o benefício do poder público ou população em geral.
Isso não significa, contudo, que o condomínio de lotes passou a ter os mesmos requisitos de um loteamento ou desmembramento. Numa interpretação total do sistema jurídico se percebe de forma clara que ao não colocar o condomínio de lotes integralmente na Lei 6.766/79 ou, ainda, por não informar que se aplica a Lei 6.766/79 aos condomínios de lotes, não quis o legislador estender as limitações a esta nova modalidade de exploração da propriedade.
Neste sentido ensina Hélio Lobo Júnior[7], desembargador aposentado do TJSP que
[...] embora a regra pudesse ter sido colocada nas leis que regulam o condomínio edilício ou a incorporação imobiliária, a sua localização, como regra urbanística da Lei 6.766 de 1979, não significa que houve qualquer alteração quanto ao regime jurídico incidente para o condomínio de lotes.
Reforça este argumento o fato de que a Lei 14.382/2022 trouxe alterações ao condomínio de lotes e deixou ainda mais claro que se aplica no que couber ao condomínio de lotes, respeitada a legislação urbanística, “o regime jurídico das incorporações imobiliárias”.
Para arrebatar, recentemente publicado pelo Tribunal de Justiça do Estado Santa Catarina seu novo Código de Normas de 2023, que reserva uma seção específica ao condomínio de lotes e é claro ao dispor em seu art. 1.110 que
[...] aplicam-se aos condomínios de lotes, no que couber, as disposições relativas à incorporação imobiliária e ao condomínio edilício, na forma do art. 1.358-A do Código Civil, equiparando-se o empreendedor ao incorporador.
Como se pode observar, o que fez a lei e agora o Código de Normas de Santa Catarina é equipar o empreendedor do condomínio de lotes ao incorporador, não ao loteador. Por isso, ainda que se tenha total ciência de que requisitos urbanísticos devem ser observados, com exceção daquilo que expressamente disposto, não há como aplicar as regras relativas ao parcelamento do solo previstas na Lei 6.766/79.
iv) O Projeto de Lei Complementar 24/2023
Apresentados os principais conceitos e interpretações atinentes ao condomínio de lotes, para suprir o objetivo deste parecer passar-se-á à análise jurídica do projeto de lei complementar 24/2023 que se encontra em trâmite na Câmara de Vereadores de Itajaí/SC.
Importa destacar que neste parecer não se adentrará aos critérios específicos técnicos criados ou de responsabilidade de criação de engenheiros, arquitetos e urbanistas. A análise, repisa-se, focará no aspecto jurídico da norma e sua adequação ao ordenamento jurídico federal vigente.
De antemão adianta-se que base legal escolhida no projeto legislativo, no meu entender, está adequada por determinar que a legislação federal a ser observada pela administração pública aos condomínio de lotes é o Código Civil de 2002 e a Lei 4.591/64, como se observa em seu art. 2º.
Da forma como posta, conjuntamente analisando-se os artigos 2º, 3º, 5º, 6º, 9º e 10, cuidou o projeto de lei em trazer segurança jurídica aos empreendedores e ao poder público do Município de Itajaí ao discorrer e regular o condomínio de lotes como um empreendimento caracterizado por áreas comuns e privativas cuja responsabilidade de incorporar, instituir o condomínio e implantar toda a infraestrutura é do empreendedor, coisa que respeita o que disposto no integralidade do art. 1.358-A do Código Civil de 2002.
No mesmo sentido, ainda que com certa atecnia[8], vê-se que o Capítulo III, em seus arts. 12, 13 e 14 se prestam a trazer critérios e requisitos mínimos urbanísticos ao condomínio de lotes, exatamente como previsto no art. 4º, §4º, da Lei 6.766/79 e nos artigos 35, 36, 37 38 e 39 da Lei Estadual 17.492/2018.
Entendo que adequados, também, o art. 7º e a integralidade do Capítulo IV porque com a criação de condomínio de lotes não há parcelamento do solo e nem diminuição a um tamanho inferior ao módulo rural, por isso, vejo que estão em harmonia com a legislação federal relativa à zona rural, como, por exemplo, o artigo 65 da Lei 4.504/1964.
Neste ponto, anota-se que para que o projeto de lei esteja adequado ao parágrafo único do art. 1.111 do Código de Normas de Tribunal de Justiça de Santa Catarina de 2023, necessário será, antes de autorizar o condomínio de lotes em zona rural, tornar tal área zona urbana, zona de expansão urbana ou de urbanização específica por meio de plano diretor ou lei municipal.
Necessário frisar que como não se deve aplicar as regras gerais da Lei 6.766/79 ao condomínio de lotes, descabida, ao nosso ver, a obrigação de doação de áreas institucionais como faz o art. 21 do projeto de lei em discussão. Neste sentido, merece destaque acórdão lavrado pelo Tribunal de Justiça Catarinense que reconhece a inconstitucionalidade de Lei Municipal de Içara que determina a doação de áreas para o Município quando da criação de condomínio de lotes. Vejamos:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - ARTS. 44 E 54 LEI N. 822/90 DO MUNICÍPIO DE IÇARA - PARCELAMENTO DO SOLO - COMPETÊNCIA LEGISLATIVA CONCORRENTE DA UNIÃO, ESTADOS E DISTRITO FEDERAL PARA DIREITO URBANÍSTICO - EXIGÊNCIA DE DESTINAÇÃO DE PERCENTUAL DO IMÓVEL OU IDENIZAÇÃO AO MUNICÍPIO PARA ÁREAS SUPERIORES A 10.000,00 M² NO QUE DIZ RESPEITO AOS DESMEMBRAMENTOS E DE DESTINAÇÃO DE PERCENTUAL DO IMÓVEL OU IDENIZAÇÃO AO MUNICÍPIO PARA ÁREAS SUPERIORES A 7.200,00 M² NO QUE DIZ RESPEITO AOS CONDOMÍNIOS - INCONSTITUCIONALIDADE VERIFICADA - DISPOSIÇÕES APLICÁVEIS APENAS AOS LOTEAMENTOS - MODALIDADES DE PARCELAMENTO DE SOLO COM NATUREZAS DISTINTAS - CONTRARIEDADE O DISPOSTO NA NORMA FEDERAL E AFRONTA AO DIREITO DE PROPRIEDADE. PREVISTO NO ART. 5º, XXII, DA CF/88 - PEDIDO PROCEDENTE.
(TJSC, Direta de Inconstitucionalidade (Órgão Especial) n. 5026202-17.2022.8.24.0000, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Salete Silva Sommariva, Órgão Especial, j. 19-10-2022).
Como se pode observar, o Tribunal de Justiça Catarinense já se debruçou sobre o tema e além de reconhecer a aplicabilidade do Código Civil e da Lei 4.591/64 ao condomínio de lotes, julgou inconstitucional, por afronta ao art. 5º, XXII, da CF/88, a imposição legal de doação de áreas do condomínio para a municipalidade.
Por último, mas não menos importante, merece comentário o art. 23 do projeto de lei porque aduz que haveria um direito adquirido aos empreendedores que tenham tão somente protocolizado seus projetos perante a Prefeitura Municipal de Itajaí.
Ao nosso ver, ao contrário de uma aprovação formal, o mero protocolo não gera direito adquirido, razão pela qual entende-se que há um vício neste artigo 23 que pode facilmente ser sanado com a exigência de aprovação de projeto para que seja viabilizado o andamento e registro do condomínio de lotes.
v) A Recomendação 0005/2023/10PJ/ITJ, do MPSC
Expostos conceitos, fundamentos e inclusive opinião acerca do condomínio de lotes e do PL 24/2023, passa-se a abordagem da Recomendação 0005/2023/10PJ/ITJ encaminhada pelo MPSC aos membros da Câmara de Vereadores de Itajaí/SC (CVI).
O documento apresenta seis pontos que entende o MPSC que seriam de pertinente análise da CVI sob pena de caracterizar-se ilegalidades e até inconstitucionalidades do projeto de lei. Os comentários a tais ponderações serão feitos um a um de forma destacada.
1. Aplicabilidade da Lei Federal 6.766/79
Sugere o MPSC que como a Lei 13.465/2017, criadora do condomínio de lotes, alterou a Lei 6.766/79, o conceito de lote teria alcançado também a unidade imobiliária de condomínio de lotes, e, por isso, necessário seria observar os requisitos da 6.766/79 para a instalação de condomínio de lotes.
Mesmo que muito se respeite os membros do parquet, especialmente Dra. Giselli Dutra e Dra. Fernanda Broering Dutra, discordo bastante da opinião exarada tanto na pesquisa 125/2023 como na recomendação acima mencionada.
As razões da discordância residem nos fatos de que a própria Lei 13.465/2017 e a Lei 14.382/2022 dispõem que a norma base para o condomínio de lotes é o código civil de 2002 e a Lei 4.591/64.
Corroboram tal raciocínio o Código de Normas do TJSC de 2023 e acórdão de relatoria da Des. Salete Sommariva nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5026202-17.2022.8.24.0000, publicado em 2022.
Não bastasse, rememora-se que no condomínio de lotes não existe a divisão ou o parcelamento físico do solo, mas tão somente um fracionamento a fim de viabilizar que várias pessoas sejam proprietárias de um percentual ideal daquela gleba.
Para que não pairem pontas soltas, merece atenção o art. 4º, §4º, da Lei 6.766/79 que, como já narrado no tópico “iv” deste parecer, aplica-se de forma isolada ao condomínio de lotes. Tal artigo traz inclusive com exemplos de restrições administrativas que poderiam ser criadas pelo Município, como servidões de passagem, usufrutos e restrições à construção de muros.
Tais requisitos, contudo, entende este parecerista que já estão dispostos no PL24/2023 objeto deste estudo.
2. Necessidade de destinação de áreas verdes e institucionais
A recomendação enviada pelo MPSC sugere que seja necessário, para a instauração de condomínio de lotes em Itajaí, que áreas verdes criadas e áreas institucionais devam ser doadas ao Município de Itajaí/SC.
Novamente com todo o respeito, entende este parecista que o alerta é válido em relação às áreas verdes, no entanto, já existe inclusive julgado do TJSC informando que a determinação de doação de áreas institucionais é inconstitucional por afronta ao art. 5º, XXII, da CF/88.
Assim, entende-se que por mais que esteja prevista em lei, descabida exigência de criação de áreas institucionais porque manifestamente inconstitucional.
Por outro lado, considerando o que disposto art. 4º, §4º, da Lei 6.766/79, frisa-se que não há sequer sugestão acerca da necessidade imposição de áreas verdes aos condomínios de lotes. Caberia, portanto, ao Poder Executivo e/ou Legislativo, em relação às áreas verdes definir qual a efetiva necessidade e proporção de tais áreas ao empreendimento.
Por esta razão, ainda que válido o alerta do MPSC, entendemos que longe se passa de uma ilegalidade ou inconstitucionalidade do PL23/2024 caso não aponte ou aponte num grau diferente a necessidade de destinação de áreas verdes ao condomínio de lotes.
3. Da (im)possibilidade de instalação de condomínio de lotes em áreas rurais
Partindo do pressuposto de que condomínio de lotes culmina por parcelar/fatiar o solo, o MPSC sugere que seria inviável a criação de condomínio de lotes em razão do que disposto na Lei 4.504/64, DL62.504/1968, DL58/1937 e IN 82/2015 do INCRA.
Como já narrado no corpo deste estudo, há pacificidade de toda a doutrina que o condomínio de lotes não é parcelamento do solo porque a gleba não sofre alteração em seus limites.
Por esta razão, não há o que se falar inviabilidade de condomínio de lotes em áreas rurais porque não se aplica, com sugere o MPSC, o art. 3º, da Lei 6.766/79 a este instituto.
Neste sentido, e mais tênue que a recomendação do MPSC é o Código de Normas do TJSC de 2023, que em seu art. 1.111, parágrafo único, sugere que mediante a aprovação do INCRA seria possível a criação de condomínio de lotes em zonas rurais, e, mediante autorização em plano diretor ou lei municipal, viáveis condomínios de lotes em zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica.
Neste ponto, ao se analisar o art. 18 do PL24/2023 entende-se que está o projeto lei em harmonia com o ordenamento jurídico voltado aos condomínios de lotes.
4. Da responsabilidade pela implantação da infraestrutura do condomínio de lotes
O quarto ponto de observação sugerida pelo MPSC diz respeito à responsabilidade pela implantação da infraestutura do condomínio de lotes por parte do empreendedor.
Embora destacado na recomendação o art. 11, V, do PL24/2023, que atribui como de responsabilidade do incorporador a “implantação” da infraestrutura, entende o MPSC que necessária seria a adequação à Lei Estadual 17.492/2018 para que a “implementação” e a “manutenção” da infraestrutura básica sejam de responsabilidade do empreendedor até a expedição da licença final.
A sugestão, ao nosso ver, pode ser acatada para deixar ainda mais clara a responsabilidade do empreendedor. De todo modo, relembra-se que mesmo sem a alteração no PL, jurisprudência moderna apenas considera entregue a incorporação com a expedição do habite-se do empreendimento, e, por isso, mesmo que não disposto em lei municipal, já estaria o empreendedor responsável não só pela implementação, mas, também pela manutenção da infraestrutura até a entrega final do empreendimento.
Não por outra razão o art. 1.358-A, §3º, do Código Civil de 2002 menciona que fica a cargo do empreendedor a “implantação de toda a infraestrutura” do condomínio de lotes. Logo, se cabe ao empreendedor implantar e apenas é considerado entregue quando do habite-se, logicamente no momento do habite-se/entrega deve a infraestrutura estar em pleno funcionamento.
5. Da aplicabilidade da Lei 4.591/64
Os comentários a este tópico são os mesmos daquele previstos no tópico 1 e boa parte deste parecer. Ao contrário do que entende o MPSC, o estudo aqui realizado demonstra que a legislação aplicável ao condomínio de lotes é o Código Civil de 2002 e a Lei 4.591/64, não a Lei 6.766/79.
O legislador foi bastante claro ao dispor não só uma, mas duas vezes, em duas leis diferentes, que deve ser aplicado o regime de incorporação imobiliária ao condomínio de lotes, e por isso, incorreto seria aplicar tal sistema apenas de forma subsidiária como pretende fazer crer o parquet.
6. Do art. 23 do PL24/2023
Este derradeiro tópico arguido pelo MPSC, ao ver deste parecista, é aquele que melhor deve ser aproveitado pela CVI.
De fato, a redação do art. 23 do PL24/2023 apresenta lacunas e traz insegurança jurídica não só para a administração pública, mas também para o empreendedor.
Foi por esta razão que sugerido no final do item “iv” acima que a redação de tal artigo carece de alteração a fim de manter o direito adquirido apenas àqueles empreendedores que tiveram seu projeto aprovado antes da lei.
vi) As Emendas Substitutivas
A última abordagem deste parecer são os comentários a algumas emendas substitutivas ao PL24/2023 que foram apresentadas por membros da CVI.
Chegaram ao conhecimento doze delas, das quais, adianta-se, apenas serão abordadas aquelas que entende este parecista, dentro de seu conhecimento técnico-jurídico, pertinentes ou impertinentes ao sistema de condomínio de lotes.
São as emendas e os respectivos comentários:
a) Emenda substitutiva n. 4 (5% para uso institucional)
A sugestão desta emenda cuida de diminuir para 5% o montante original disposto no PL que prevê a reserva de 10% da área total dos lotes para uso institucional da municipalidade.
Ao nosso ver a emenda beneficia os empreendedores, contudo, mantém inconstitucionalidade já reconhecida pelo TJSC acerca da destinação de área institucional para a Municipalidade.
Assim, entendemos que a emenda deveria afastar integralmente a necessidade de doação/destinação de área institucional para o Município quando se estiver diante de condomínio de lotes.
b) Emenda substitutiva n. 5 (altera art. 5º e 11)
Esta emenda, em seu art. 1º, contraria o Código Civil de 2002 e possui manifesto erro conceitual ao incutir a lógica de que no condomínio de lotes existe a divisão de gleba ou terreno em lotes.
Ao nosso ver, há flagrante confusão entre os institutos e se acatada tal emenda certamente totalmente desconfigurado estaria o condomínio de lotes e inaplicável ficaria o PL24/2023.
Por sua vez, os art. 2º, 3º e 4º tecnicamente não poderia ser acatados porque já estão abarcados por outras legislações federais, como a CF/88, Código Civil de 2002 e Lei 4.591/64 e, com isso, além de serem inócuos, poderiam trazer insegurança jurídica com duplicidade de normatização acerca dos temas abordados.
c) Emenda substitutiva n. 6 (Aplicação da 6.766/79)
Esta emenda visa aplicar como norte de interpretação e aplicação do condomínio de lotes a Lei 6.766/79, que é aquela voltada ao parcelamento do solo.
Como exaustivamente exposto e fundamentado acima, incorreto e ilegal tal emenda porque desrespeita o que exposto de forma explícita no art. 1.358-A do Código Civil de 2002.
Não fosse o suficiente, tal emenda certamente traria insegurança jurídica e até inconstitucionalidade, já que, como exarado no acórdão da Direta de Inconstitucionalidade n. 5026202-17.2022.8.24.0000 do TJSC, inaplicável aos condomínios de lotes a lógica e a integralidade dos requisitos da Lei 6.766/79.
d) Emenda substitutiva n. 7 e Emenda substitutiva n. 12 (Altera art. §§2º, 6º e 7º do art. 14)
Ao analisar ambas as emendas, entendemos que o art. 1º daquela emenda n. 7 e o art. 1º da emenda 14 alteram o §2º do art. 14 e dizem respeito a questões de áreas verdes que, ao nosso ver, estaria dentro do âmbito da discricionariedade do executivo e legislador. Logo, não se enxerga problemas a tal alteração.
Contudo, as sugestões de alteração dos §§6º e 7º esbarram, ao nosso ver, no Código Civil de 2002 e no art. 5º XXII da CF/88.
Como acima exposto, a determinação de doação de áreas institucionais quando da criação de condomínio de lotes é matéria ilegal e inconstitucional, assim, ainda que o PL contenha equívocos em sentido similar, opinamos pela não aprovação e retirada de tais emendas substitutivas inclusive do processo de votação.
e) Emenda substitutiva n. 11 (Altera art. 23)
A emenda substitutiva n. 11 procura corrigir uma redação demasiadamente aberta do art. 23 do PL 24/2023.
É bem verdade que a emenda traz mais segurança jurídica aos empreendimentos que estão sob aprovação pela Municipalidade e que com a redação sugerida pela emenda o PL 24/2023 afastada ficaria a possibilidade de um limbo jurídico aos projetos tão somente protocolizados perante o Município de Itajaí.
Contudo, anota-se que tal emenda não é capaz de trazer segurança jurídica àqueles empreendedores que tiveram uma prévia análise de seus procedimentos com um rol de exigências que já podem ter se adequado ou, ainda, àqueles empreendedores que tiveram seus projetos aprovados mas que ainda não foram efetivamente registrados perante o Registro de Imóveis.
Com isso, há risco com a redação sugerida de demandas judiciais dos empreendedores em face da administração pública, razão pela qual se sugere a retificação do art. 23 mas não, necessariamente, via emenda substitutiva n. 11.
vii) Conclusões e sugestões ao PL 24/2023
Observados os pontos jurídicos fundamentais do condomínio de lotes e a legislação federal que deve servir como sua regente, conclui-se este parecer com as seguintes e objetivas sugestões, todas elas com as justificativas já apresentadas no bojo deste estudo.
1. Deve a legislação municipal ter como base legislativa federal o Código Civil de 2002 e a Lei 4.591/64, e, ao mesmo tempo, afastar-se a aplicação integral do art. 6.766/79.
2. Sugere-se a não aprovação ou retirada de proposição das emendas substitutivas n. 4, 5, 6, 7, 11 e 12.
3. O artigo 4º do PL 24/2023 pode ser redigido de forma mais clara e abrangente, compatibilizando-se com o que proposto pela recomendação do MPSC, com a seguinte redação:
Art. 4º. Com exceção do que disposto no art. 4º, §4º, da Lei 6.766/79, não se aplicam ao condomínio de lotes as normas voltadas a disciplinar ou regulamentar a Lei 6.766/1979.
Parágrafo único: Naquilo que não se opõe à presente lei, aplica-se a Lei Ordinária n. 17.492/2018 do Estado de Santa Catarina.
4. O artigo 14, §§6º e 7º, assim como os artigos 20, 21 e 22, todos do PL 24/2023, devem ser removidos por afronta ao 1.358-A, Código Civil de 2002 e ao art. 5º, XXII, da CF/88.
4.1. Observada a redação dada a tais artigos, sendo o entendimento da Câmara Municipal de Itajaí aquele de manter a necessidade de doação de áreas institucionais para o Município, vê-se que poderia haver margem para demandas judiciais de eventuais empreendedores interessados.
5. O art. 23 do PL24/2023 deve ser alterado, sendo que a redação sugerida a fim de trazer maior segurança jurídica a empreendedores e ao Poder Público, assim como respeitar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro seria:
Art. 23. Os empreendimentos que estão em trâmite na Prefeitura Municipal de Itajaí e que tenham sido aprovados até a data de publicação desta lei serão considerados abrangidos pelo ato jurídico perfeito e, portanto, autorizado pelo Município o devido andamento e registro imobiliário, respeitadas as demais legislações pertinentes.
Sendo o que havia para expor, é o parecer.
Itajaí/SC, 05 de dezembro de 2023.
FELIPE PROBST WERNER
[1] CAMBLER, Everaldo Augusto. Responsabilidade civil na incorporação imobiliária. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[2] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: reais. 15a ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 856.
[3] Note-se que uma vez instituído o condomínio com lotes sem construção, para qualquer uma delas ser realizada, necessário será alterar toda a instituição do condomínio e reaprová-lo integralmente para cada alteração.
[4] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: reais. 15a ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 860-861.
[5] SCAVONE JUNIOR, Luiz Antônio. Direito imobiliário: teoria e prática. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 131.
[6] Art. 2º. O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes.
[7] LOBO JÚNIOR. Helio. A lei 13.465, de 11.07.2017, e o Condomínio de Lotes. In. Revista do direito imobiliário. Vol 83/2018, p. 571-585. Jul-Dez/2017.
[8] Atecnia verificada no art. 4º do projeto de lei que afirma que não seria aplicável a 6.766/79, sem ressalvar que aplicável seria exclusivamente o art. 2º, §7º e art. 4º, §4º da lei federal.