A possibilidade de revisão contratual pelo fiador que se obrigou como principal pagador
Este parecer visa a análise do conceito de fiador no ordenamento jurídico civil, da relação entre o pacto de fiança e o principal e da possibilidade de o fiador pleitear revisão contratual, especialmente quando obrigado como principal pagador, figura presente no art. 828, II, do Código Civil.
1. O fiador e a revisão contratual
A fiança, ou caução fidejussória, é um tipo de contrato por meio do qual alguém garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor em outro pacto, caso este não o faça. Está previsto no art. 818 do Código Civil e é celebrado entre o fiador e o credor do contrato principal.
O pacto é unilateral e, em regra, gratuito. Isso significa que o fiador pretende simplesmente ajudar o devedor, sem contrapartida alguma, inexistindo vantagem. Também por isso, a fiança não admite interpretação extensiva, o que implica, na prática, a interpretação a favor do fiador em caso de dúvida, presumindo-se sua boa-fé objetiva.
Como se vê, por ser uma garantia pessoal, envolvendo um sujeito garantidor, trata-se de contrato distinto do principal, podendo ser chamado de obrigação acessória, que pode ser formalizada no corpo do contrato principal ou em separado. Essa distinção, concebendo a existência de um contrato principal e de um que lhe é acessório, é importante sobretudo quando no aspecto da discussão das cláusulas contratuais.
Sabe-se que para pleitear revisão contratual o indivíduo deve ter, além de interesse processual, legitimidade ativa para isso. É patente que o fiador possui interesse na discussão de cláusulas que lhe onerem excessivamente, o que não quer dizer que tenha legitimidade ativa para tanto.
A relação jurídica estabelecida entre o credor e o devedor no negócio principal não se confunde com a estabelecida entre o mesmo credor e o fiador, mero garantidor, no negócio secundário. Em razão disso, tem-se que o fiador não possui legitimidade para pleitear a revisão do contrato principal, pois inexiste fundamento para que atue como substituto processual do devedor.
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento claro nesse sentido:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART.
535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO BANCÁRIO. MÚTUO. PRESCRIÇÃO VINTENÁRIA. PROPOSITURA DA DEMANDA SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. ILEGITIMIDADE ATIVA DO FIADOR. ACESSORIEDADE DO CONTRATO DE FIANÇA. RELAÇÃO DE DIREITO MATERIAL DE NATUREZA DISTINTA DA QUE SE ESTABELECE NO CONTRATO PRINCIPAL.
[...] 3. A legitimação para agir, que não se confunde com o interesse de agir, é qualidade reconhecida ao titular do direito material que se pretenda tutelar em juízo. Daí porque o fiador, que, como consabido, não pode atuar como substituto processual, não é parte legítima para postular, em nome próprio, a revisão das cláusulas e encargos do contrato principal.
4. A existência de interesse econômico da recorrente (fiadora) na eventual minoração da dívida que se comprometeu perante à recorrida (credora) garantir, não lhe confere por si só legitimidade ativa para a causa revisional da obrigação principal, sendo irrelevante, nesse aspecto, o fato de responder de modo subsidiário ou mesmo solidariamente pelo adimplemento da obrigação. [...]
(REsp 926.792/SC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/04/2015, DJe 17/04/2015).
Assim, o fiador, embora vinculado acessoriamente ao pacto principal com a possibilidade de ser diretamente afetado por ele, é figura incapaz de discutir os termos aos quais se obriga, o que compete unicamente ao devedor principal.
2. A figura do fiador que se obriga como principal pagador
O Código Civil prevê, no capítulo da fiança, o instituto do benefício de ordem. Dispõe o art. 827 do diploma que o fiador demandado para o pagamento da dívida tem o direito a exigir, até a contestação da lide, que os bens do devedor sejam executados primeiro.
Esse benefício pode ser removido do pacto se por previsão expressa. É do que trata o art. 828, nos seguintes termos:
Art. 828. Não aproveita este benefício ao fiador:
I - se ele o renunciou expressamente;
II - se se obrigou como principal pagador, ou devedor solidário;
III - se o devedor for insolvente, ou falido.
Do artigo surgem duas figuras ramificadas do fiador: a do que se obrigou como principal pagador e a do devedor solidário. Impende que sejam apresentadas suas definições e diferenças.
Em regra, a responsabilidade do fiador é subsidiária. Contudo, pode ser pactuado entre o fiador e o credor que a responsabilidade seja solidária entre o primeiro e o devedor, pondo-os em igualdade ante o credor. Essa é essencialmente a definição do “devedor solidário” disposto no inciso segundo do art. 828 do Código Civil.
Quanto ao “principal pagador”, consiste no fiador que, no pacto escrito, põe-se à frente do devedor, cobrindo-lhe o dever de arcar com a dívida como que atraindo a preferência de cobrança, e não em pé de igualdade, apesar de sua responsabilidade ainda ser de ordem solidária. Com isso, o pagamento pode ser exigido a ele antes que o tenha sido requerido ao devedor.
Há menção ao fiador principal pagador somente no art. 828, II, do Código Civil, que trata do benefício de ordem. Disso se extrai que sua principal característica é a de afastar o benefício, pondo-se em responsabilidade solidária com o devedor, mas atraindo a preferência de cobrança para si, diferentemente do devedor solidário.
3. A ilegitimidade do fiador que se obrigou como principal pagador para pleitear revisão contratual
Expôs-se que o fiador, em regra, não possui legitimidade para discutir cláusulas do contrato principal, bem como que o que se obriga como principal pagador se coloca em ordem de preferência até mesmo ante o devedor para cobrança. Considerando isso, pode-se levantar a questão da possibilidade de o fiador principal pagador pleitear revisão contratual.
Conquanto seja verdade que enquanto principal pagador o fiador se coloque à frente do devedor no caso de cobrança da dívida, também o é que a relação de ambos ainda é pactuada por via de contrato de fiança, sendo o fiador mero garantidor do negócio jurídico principal.
Do termo “principal pagador” deve-se absorver a ideia da ordem de preferência para pagamento da dívida, como o próprio nome expressa, o que não se confunde com a sobreposição do fiador ao devedor no contrato principal, como que o substituindo. Reitera-se que o contrato de fiança não admite interpretação extensiva, limitando-se somente ao que pactuado, em relação unilateral e gratuita.
Em suma, o contrato de fiança não concede legitimidade ao fiador para revisar cláusulas do contrato principal, seja a fiança de ordem subsidiária ou solidária, donde se conclui que o fiador principal pagador não pode buscar a revisão contratual. Isso reforça a necessidade de atenção ao se assumir tal posição.
Itajaí, 22 de novembro de 2023.
Isaque Tolentino Teixeira
OAB/SC 68.576