O objetivo do presente parecer jurídico é esclarecer se a previdência privada é considerada patrimônio comum do casal e comunicável na comunhão parcial de bens. Para isso, buscar-se-á a distinção entre as modalidades de previdências privadas, analisar- se-á o posicionamento de doutrinadores contemporâneos e pesquisar- se-á a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina nos anos de 2019 e 2020 e o REsp 1.880.056 do Superior Tribunal de Justiça.
Pois bem. Maria Berenice Dias1 ensina que não se pode confundir previdência privada com previdência complementar fechada. Ela distingue as Entidades Fechadas de Previdência Complementar das Entidades Abertas de Previdência Complementar. A primeira não possui finalidade lucrativa e consiste na disponibilização de planos de benefício complementar a empregados ou grupos de empresas a eles vinculados. Aqui há um caráter previdenciário e a natureza se equipara a pensão e meio soldo, pelo que é incomunicável. Já a segunda possui uma finalidade lucrativa e seus planos de benefício de previdência privada são oferecidos a qualquer pessoa, de forma aberta (2020, p. 722).
Dito isso, tem-se que a previdência privada possui duas modalidades, Maria Berenice Dias, destaca:
''a) Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL) tem caráter previdenciário. Destina-se à formação de uma renda no longo prazo, para a concessão de uma renda ao beneficiário durante sua vida, após ele atingir determinada idade;
b) Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) assemelha a um seguro, mediante o pagamento de uma importância em dinheiro aos beneficiários indicados do instituidor, depois de sua morte (2020, p. 723).''
Ao analisar o REsp 1.477.937/MG, julgado em 24.04.2017, pelo STJ, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Roselvad2 ensinam que benefícios decorrentes de previdência privada fechada estão excluídos da comunhão, em analogia ao art. 1.659, VII, do Código de Processo Civil que dispõe acerca da exclusão das pensões, meio- soldos, montepios e outras rendas semelhantes (2020, p. 373).
Maria Berenice Dias3 citando José Simão esclarece que antes de se alcançar a idade firmada pelo plano de benefício, a previdência privada é uma aplicação financeira, portanto, antes de se atingir a idade estabelecida pela previdência privada não há se falar em pensão e, por consequência, em incomunicabilidade. O raciocínio é lógico: Antes deste período não é possível saber se o titular efetuará o saque dos valores ou se, efetivamente, ao final do plano serão convertidos em renda (2020, p. 724).
Feitas as distinções acerca das modalidades de previdência privada com base na doutrina contemporânea, passar-se-á à análise de julgados.
Em consulta à jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, utilizando-se as palavras chaves “previdência privada” e “comunhão parcial”, no período compreendido entre 01.01.2019 e 30.03.2021, localiza-se 04 resultados.
O primeiro deles é de 25.07.2019, da Sétima Câmara de Direito Civil, sob a relatoria do Desembargador Álvaro Luiz Pereira De Andrade, julgou a apelação cível n. 0001186-58.2004.8.24.01044 e decidiu da seguinte forma:
''[...]PARTILHA DE BENS. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL (ARTIGO 1.658 DO CC/2002). PREVIDÊNCIA PRIVADA FIRMADA PELO AUTOR. FORMAÇÃO DE RESERVA FINANCEIRA QUE NÃO TEM CARÁTER DE INVESTIMENTO. INCOMUNICABILIDADE. ANALOGIA AS DISPOSIÇÃO DO ART. 1659, INCISO VII, DO CÓDIGO CIVIL (TJSC, 2019, on-
line[...]''
Em 05.05.2020, a Sexta Câmara de Direito Civil, sob a relatoria da Desembargadora Denise Volpato, julgou a Apelação Civel n. 0303147-60.2015.8.24.00115 e decidiu da seguinte forma:
''[...]PARTILHA. PRETENDIDO RECONHECIMENTO DO DIREITO À METADE DO VALOR SACADO DA CONTA-CONJUNTA E DEPOSITADO EM PLANO DE PREVIDÊNCIA PRIVADA EM NOME DO REQUERIDO. SUBSISTÊNCIA. NÃO CARACTERIZADA A FORMAÇÃO DE RESERVA FINANCEIRA PARA CONSTITUIÇÃO DE RENDA FUTURA MEDIANTE CONTRIBUIÇÕES MENSAIS COM RECURSOS PESSOAIS DO COMPANHEIRO, HÁBIL A ENSEJAR INCOMUNICABILIDADE (ART. 1.659, VII, CÓDIGO CIVIL). CONJUNTO PROBATÓRIO QUE ATESTA O SAQUE DO NUMERÁRIO DEPOSITADO EM CONTA-POUPANÇA DE TITULARIDADE CONJUNTA E O CORRESPONDENTE DEPÓSITO EM FUNDO ABERTO DE PREVIDÊNCIA PRIVADA DA MESMA INSTITUIÇÃO BANCÁRIA, EFETUADO PELO REQUERIDO POUCOS MESES ANTES DO FIM DA UNIÃO. VALOR POUPADO EM COMUNHÃO DE ESFORÇOS COM CARÁTER DE INVESTIMENTO FINANCEIRO. NECESSIDADE DE SE RESGUARDAR O DIREITO DA COMPANHEIRA PREJUDICADA DIANTE DO DESVIO DE FINALIDADE DA CONTRATAÇÃO DA PREVIDÊNCIA PRIVADA. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO QUE IMPÕEM O ACOLHIMENTO DO PLEITO RECURSAL PARA EVITAR O ENRIQUECIMENTO[...]''
Em 21.05.2020, a Segunda Câmara de Direito Civil, sob a relatoria do Desembargadora Bettina Maria Maresch de Moura, julgou o Agravo de Instrumento n. 4023575-15.2016.8.24.00546 e decidiu da seguinte forma:
''[...] MATRIMÔNIO DO CASAL SOB O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. IMÓVEL ADQUIRIDO ANTES DA UNIÃO. VALORES ATINENTES A SALDO DE FGTS, VERBAS RESCISÓRIAS E DE PREVIDÊNCIA PRIVADA QUE POSSUEM CARÁTER PERSONALÍSSIMO[...]''
Em 20.10.2020, a Sexta Câmara de Direito Civil, sob a relatoria do Desembargador André Luiz Dacol, julgou a Apelação Civel n. 0305232-50.2016.8.24.00547 e decidiu da seguinte forma:
''[...]PARTILHA. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. PREVIDÊNCIA PRIVADA. IMPOSSIBILIDADE DE DIVISÃO. SAQUE DO VALOR. ATO QUE NÃO DESNATURA A APARENTE INCOMUNICABILIDADE POIS AUTORIZADO PELA SISTEMÁTICA DAQUELE CONTRATO. PRECEDENTES DESTE ÓRGÃO FRACIONÁRIO[...]''
Dos 04 resultados localizados junto ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina, denota-se que 03 jurisprudências se posicionaram pela incomunicabilidade da previdência privada aos argumentos de que se trata de direito personalíssimo e de que não possui caráter de investimento, sem fazer menção se aberta ou fechada. Somente uma jurisprudência entendeu que a previdência privada aberta possui natureza de investimento financeiro capaz de afastar a incomunicabilidade.
Com a análise deste cenário, observar-se-á o recente posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que decidiu sobre a temática no Recurso Especial n. 1.880.056, julgado em 16.03.2021 sob a relatoria da Ministra Andrighi. Extrai-se da ementa:
''[...]PLANOS DE PREVIDÊNCIA PRIVADA ABERTA. REGIME MARCADO PELA LIBERDADE DO INVESTIDOR. CONTRIBUIÇÃO, DEPÓSITOS, APORTES E RESGATES FLEXÍVEIS. NATUREZA JURÍDICA MULTIFACETADA. SEGURO PREVIDENCIÁRIO. INVESTIMENTO OU APLICAÇÃO FINANCEIRA. DESSEMELHANÇA ENTRE OS PLANOS DE PREVIDÊNCIA ABERTA E FECHADA, ESTE ÚLTIMO INSUSCETÍVEL DE PARTILHA. NATUREZA SECURITÁRIA E PREVIDENCIÁRIA DOS PLANOS PRIVADOS ABERTOS VERIFICADA APÓS O RECEBIMENTO DE VALORES ACUMULADOS, FUTURAMENTE E EM PRESTAÇÕES, COMO COMPLEMENTAÇÃO DE RENDA. NATUREZA JURÍDICA DE INVESTIMENTO E APLICAÇÃO FINANCEIRA ANTES DA CONVERSÃO EM RENDA E PENSIONAMENTO AO TITULAR. PARTILHA POR OCASIÃO DO VÍNCULO CONJUGAL. NECESSIDADE. ART. 1.659, VII, DO CC/2002 INAPLICÁVEL À HIPÓTESE[...]''
Do corpo do acórdão verifica-se que a distinção feita entre as modalidades de previdência privada vai ao harmonioso encontro da doutrina contemporânea, ou seja, no sentido de que a previdência privada aberta permite ao investidor deliberar acerca dos valores de contribuição, depósitos adicionais, resgates antecipados ou parceladamente até o fim da vida, dada a liberdade e flexibilidade deste regime de capitalização.
Por isso, é forçoso concluir que a natureza jurídica da previdência privada aberta é semelhante a um seguro previdenciário adicional sem deixar de se assemelhar a um investimento ou aplicação financeira.
Isso porque a natureza previdência surge a partir do momento em que o investidor passa a receber as prestações periódicas que acumulou ao longo da vida, como forma de complementação da renda e para a manutenção de um determinado padrão de vida. Antes disso, ou seja, antes desta conversão em renda e pensionamento, a natureza é de investimento, justamente pelas amplas possibilidades de movimentação disponível ao investidor.
Diante destas múltiplas possibilidades é que a previdência privada aberta deve ser objeto de partilha e não merece ser agasalhada pela regra insculpida no art. 1.659, VII, do CC/2002.
Entender de forma diversa seria um verdadeiro desastre jurídico, na medida em que a contratação de previdência privada aberta seria uma excelente estratégia para fraudar o regime de bens, porquanto seria possível aplicar recursos adquiridos em comunhão de esforços e deixá-lo blindado em eventual partilha. Sem entrar muito no mérito, já que não é objeto deste parecer, mas consequência desastrosa poderia acontecer também no direito sucessório, já que seria possível fraudar a legítima, inclusive.
Embora o Tribunal de Justiça de Santa Catarina ainda não tenha julgados sobre o tema após a decisão do Superior Tribunal de Justiça, o que se verifica é uma probabilidade de mudança de entendimento, uma vez que o Recurso Especial n.1.880.056 trouxe uma profunda e coerente argumentação capaz de trazer importantes reflexões no direito das famílias, mas principalmente maior segurança jurídica para tratar das previdências privadas no âmbito familiar.
1DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 13ª ed. rev. ampl. E atual. – Salvador: Editora Juspodivm, 2020.
2FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de direito civil: famílias/ Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald – 12. Ed. ver. E atual. – Salvador: Ed. Juspodivm, 2020.
3DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 13ª ed. rev. ampl. E atual. – Salvador: Editora Juspodivm, 2020
4TJSC. APELAÇÃO CÍVEL: 0001186-58.2004.8.24.0104. Relator: Desembargador Álvaro Luiz Pereira de Andrade. DJ. 25.07.2019. Disponível em http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora. Acessado em 20.04.2021
5TJSC. APELAÇÃO CIVEL: 0303147-60.2015.8.24.0011. Relatora: Desembargadora Denise Volpato. DJ 05.05.2020. Disponível em http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora. Acessado em 20.04.2021
6TJSC. AGRAVO DE INSTRUMENTO: 4023575-15.2016.8.24.0054. Relatora: Desembargadora Bettina Maria Maresch de Moura. DJ 21.05.2020. Disponível em http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora. Acessado em 20.04.2021
7TJSC. APELAÇÃO CIVEL: 0305232-50.2016.8.24.0054. Relator: Desembargador André Luiz Dacol. DJ 20.10.2020. Disponível em http://busca.tjsc.jus.br/jurisprudencia/#resultado_ancora. Acessado em 20.04.2021