A doação é contrato benéfico que culmina por acrescentar patrimônio ao donatário em detrimento de uma diminuição patrimonial do doador.
Quando feita de ascendente para descendente, dispõe o Código Civil do 2002 em seu art. 5441 que a regra geral é de estar-se ante uma antecipação de herança, razão pela qual necessário que o donatário leve este bem por ele recebimento recebido à colação2 quando da abertura do inventário de seu ascendente.
Ainda que seja possível o doador, no momento da doação, dispensar tal bem da colação (exceção à regra), mesmo com tal dispensa é vedado que o mesmo disponha de mais da metade de seus bens caso possua outros herdeiros necessários3.
As regras, embora com suas particularidades, apresentam uma resposta aparentemente simples, contudo, o tema ganha contornos de grande complexidade quanto observado com a atenção merecida, como se expõe adiante.
Sabe-se que uma das principais características da doação de ascendente para descendente – e que deva ser levado à colação - reside no fato de que há dissociação do momento em que o bem doado que deve ser levado à colação é recebido pelo donatário do de cujus (falecido) e aquele da abertura da sucessão deste último (data do falecimento).
Esta diferença entre a data do recebimento e aquela da na qual deve ser realizada a colação do bem doado muitas vezes pode causar abissal diferença de valores do bem durante aquele tempo.
Em outras palavras, e para que não paire nenhuma dúvida na cabeça do leitor, pode um bem quando doado ser avaliado em R$100.000,00, mas, no momento da colação – que ocorrerá apenas após o falecimento daquele doador – ter este mesmo bem sofrido grande valoração a ponto de estar avaliado em R$500.000,00.
Esta diferença de valores, se observado apenas o direito material (Código Civil de 1916 e Código Civil de 2002), de fato em nada alteraria o montante a ser colacionado, já que os arts. 1.792 do CC/16 e 2.004 do CC/02 dispõem que o valor da colação dos bens doados deverá ser aquela da data da doação, isto é, quando efetivamente recebidos pelo descendente donatário.
Por outro lado, observados o Código de Processo Civil de 1973 e também aquele de 2015, a questão assume contorno completamente diverso, já que o art. 1.014, parágrafo único do CPC/73 e o art. 639, parágrafo único do CPC/15 dispõe que o valor do bem a ser colacionado é aquele do momento da abertura da sucessão.
Enquanto a norma de direito material responde a tal situação de fato de forma a não levar em consideração o tempo entre a doação e a colação, aquela do direito processual faz exatamente o oposto.
As normas, mesmo considerando apenas aquelas vigentes, acredite o leitor ou não, se contradizem. A questão já foi levada ao Superior Tribunal de Justiça, ocasião que a Terceira Turma, em acórdão de relatoria da Ilustre Min. Nancy Andrighi4, reconheceu a antinomia, entendeu que não haveria espaço para aplicação do critério da norma mais específica porque que era composta tanto intensidade material como processual, e, por isso, definiu que deveria ser resolvido imbróglio unicamente pelo critério da temporalidade das normas.
Isto significa dizer que do Código Civil de 1916 até o início da vigência do Código de Processo Civil de 1973 - (01/01/1974), o que era válido era a regra material disposta naquele primeiro. Do início da vigência do CPC/73 data até o início da vigência do Código Civil de 2002, em 08/01/2003, a regra era aquela processual disposta no CPC/1973, e, após, retornada a regra do direito material. Em 18/03/2015 a regra altera-se novamente, passando a valer aquela processual que dissocia o valor do bem no tempo da doação daquele da colação.
A aplicação de cada uma das normas, lembra-se, deve ser analisada sempre ao tempo em que realizada a doação (tempus regis actum) e é de grande relevância porque inevitavelmente influenciará de forma direta a distribuição dos demais bens que porventura existam a partilhar, ou, ainda, em reconhecimento de uma inoficiosa doação post mortem.
1BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acessado em 08 de fevereiro de 2021.
2Neste sentido, observar art. 2.002 do Código Civil de 2002.
3Neste sentido, observar arts. 1.845 e 1.846 do Codigo Civil de 2002.
4BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1698368/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi. Dj. 14/05/2019. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=COLACAO+VALOR+DO+BEM&b=ACOR&p=false&l=10&i=8&
operador=mesmo&tipo_visualizacao=RESUMO. Acesso em 07 de fevereiro de 2021.
5Doutor em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC/SP. Advogado e professor.