CAUSAS ACIMA DE 40 SALÁRIOS-MÍNIMOS PODEM SER PROCESSADAS PELO RITO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL SEM IMPORTAR EM RENÚNCIA AO CRÉDITO EXCEDENTE?
Nos termos do art. 3º da Lei n. 9.099/1995, o juizado especial cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas, entre outras, as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil.
A legislação processual ali mencionada é a revogada, de 1973, que, em seu art. 275, inciso II, com redação dada pela Lei n. 9.245/1995, previa o seguinte:
Art. 275. Observar-se-á o procedimento sumário:
[...]
II - nas causas, qualquer que seja o valor:
a) de arrendamento rural e de parceria agrícola;
b) de cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio;
c) de ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico;
d) de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre;
e) de cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo, ressalvados os casos de processo de execução;
f) de cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em legislação especial;
g) que versem sobre revogação de doação;
h) nos demais casos previstos em lei.
Apesar de ter o Código de Processo Civil de 1973 sido revogado com a promulgação do Código de Processo Civil de 2015, por força do art. 1.063 deste último, os juizados especiais cíveis continuam competentes para o processamento e o julgamento das causas previstas no art. 275, II, do Código de Processo Civil de 1973, até a edição de lei específica que regulamente a questão.
Tramita um projeto de lei sobre o tema (PL n. 8.728/2017), que teve origem na Câmara dos Deputados e aguarda apreciação pelo Senado Federal, que visa, em síntese, suprimir do texto normativo do art. 1.063 do Código de Processo Civil de 2015 o trecho “até a edição de lei específica”, de modo a ficar recepcionada na nova ordem processual civil a competência dos juizados especiais cíveis para o processamento e julgamento das causas previstas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil revogado (Lei n. 5.869/1973).
Desconhece-se a existência de qualquer outro projeto de lei que trate sobre a temática.
Partindo das premissas postas, surgiu o questionamento se as causas enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973 devem observar a limitação de 40 (quarenta) salários-mínimos prevista no art. 3º, inciso I, da Lei n. 9.099/1995, ou aquela de 60 (sessenta) salários-mínimos prevista no art. 275, I, do Código de Processo Civil de 1973, ou, ainda, se isentas da observância de qualquer teto.
A questão é polêmica na doutrina e na jurisprudência.
Com o advento do Código de Processo Civil de 2015 e a positivação do sistema de precedentes brasileiro, foi dada maior importância aos julgamentos proferidos pelas Cortes de Vértice, entendidas como sendo o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
Em 2022, por meio da Emenda Constitucional n. 125, foi inserida, em nosso ordenamento jurídico, da relevância da questão federal como filtro/requisito de admissibilidade do recurso especial, o que veio a reafirmar a importância dos julgamentos proferidos pela Corte, que é a responsável por dar a última palavra nas questões de direito infraconstitucional e, portanto, deve selecionar os casos sobre os quais se debruça.
Dito isso, realizou-se busca no sítio do Superior Tribunal de Justiça a fim de responder ao questionamento que motivou o estudo e a elaboração do presente parecer: “causas acima de 40 salários-mínimos podem ser processadas pelo rito do juizado especial cível sem importar em renúncia ao crédito excedente?”.
Foram encontradas decisões da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que respondem ao questionamento de forma positiva, ou seja, algumas causas acima de 40 salários-mínimos podem ser processadas pelo rito do juizado especial cível sem importar em renúncia ao crédito excedente.
As decisões são datadas de 2018[1][2], 2017[3], 2015[4], 2013[5] e 2010, o que demonstra que o entendimento da 3ª Turma tem se mantido estável ao longo do tempo. Apesar de se tratar de órgão fracionário da Corte da Cidadania, é inegável a importância dos precedentes elencados, que deram a interpretação da corte sobre a temática.
Essas causas acima de 40 salários-mínimos que podem ser processadas pelo rito do juizado especial cível são aquelas previstas nos incisos II e III do art. 3º da Lei n. 9.099/1995, pois, nas palavras da Ministra Nancy Andrighi:
“O art. 3º da Lei 9.099/95 adota dois critérios distintos – quantitativo (valor econômico da pretensão) e qualitativo (matéria envolvida) - para definir o que são ‘causas cíveis de menor complexidade’. Exige-se a presença de apenas um desses requisitos e não a sua cumulação, salvo na hipótese do art. 3º, IV, da Lei 9.099/95. Assim, em regra, o limite de 40 salários-mínimos não se aplica quando a competência dos Juizados Especiais Cíveis é fixada com base na matéria” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS n. 30.170/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/10/2010, DJe de 13/10/2010, sem grifo no original).
Considerando que os incisos II e III do art. 3º da Lei n. 9.099/1995 trazem critérios qualitativos de competência, são essas as causas que podem tramitar sob o rito dos juizados especiais cíveis, superando o valor de 40 salários-mínimos sem importar em renúncia ao crédito excedente.
O inciso III acima mencionado traz a ação de despejo para uso próprio, enquanto o inciso II faz menção ao art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973 que, por sua vez, prevê as seguintes ações: a) de arrendamento rural e de parceria agrícola; b) de cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio; c) de ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico; d) de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre; e) de cobrança de seguro, relativamente aos danos causados em acidente de veículo, ressalvados os casos de processo de execução; f) de cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em legislação especial; g) que versem sobre revogação de doação; h) nos demais casos previstos em lei[6].
É o parecer.
Itajaí/SC, 2 de fevereiro de 2024.
GABRIELA CAMPOS DOS REIS
OAB/SC 45.543
[1] “A teor do disposto no art. 3º, II, da Lei 9.099/95, o Juizado Especial é competente para o julgamento das ações que, no revogado Código de Processo Civil de 1973, submetiam-se ao procedimento sumário (art. 275, II, do CPC/73), aí incluindo a ação de cobrança ao condômino de quaisquer quantias devidas ao condomínio” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS n. 53.602/AL, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 5/6/2018, DJe de 7/6/2018, sem grifo no original).
[2] “Nos termos do art. 3º, II, da Lei nº 9.099/1995, o Juizado Especial Cível possui competência para processar e julgar as ações enumeradas no art. 275, II, do CPC/1973 (aquelas submetidas ao antigo rito sumário), a exemplo das lides envolvendo a cobrança de honorários dos profissionais liberais, ressalvado o disposto em legislação especial (alínea "f" do citado dispositivo legal), independentemente do proveito econômico da pretensão” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no RMS n. 58.255/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 29/10/2018, DJe de 8/11/2018, sem grifo no original).
[3] “A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que, nos termos do art. 3º, II, da Lei nº 9.099/1995, o juizado especial cível possui competência para processar e julgar as ações enumeradas no art. 275, II, do CPC/1973 (aquelas submetidas ao antigo rito sumário), hipótese da demanda ora em análise, de cobrança de taxa condominial (alínea "b" do citado dispositivo legal), independentemente do proveito econômico da pretensão, ainda que haja necessidade de produção de prova pericial” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS n. 53.927/SC, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/10/2017, DJe de 30/10/2017, sem grifo no original).
[4] “Nos termos do art. 3º, II, da Lei nº 9.099/97, conjugado com o art. 275, II, d, do CPC, cabe aos Juizados Especiais Cíveis julgar as demandas de ressarcimento por danos causados em acidente de veículo de via terrestre, qualquer que seja o valor da causa” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RMS n. 46.955/GO, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 23/6/2015, DJe de 17/8/2015, sem grifo no original).
[5] “O critério definidor da competência dos Juizados Especiais Estaduais, previsto no art. 3º, inciso I, da Lei 9.099/95 (valor econômico da pretensão), não é cumulativo com o critério previsto no inciso II, do mesmo dispositivo legal (ações enumeradas no art. 275, II, do CPC)” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.185.841/MT, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 25/6/2013, DJe de 28/6/2013, sem grifo no original).
[6] Carlos Alberto Silveira Lenzi, em artigo intitulado “O novo procedimento sumário” publicado na Revista Técnica Resenha Eleitoral, citando Barbosa Moreira, fez menção a ações como: Ação de adjudicação compulsória (art. 16 do Decreto Lei n. 58/1937); Ação de acidente de trabalho (art. 19, inciso II, da Lei n. 6.367/1976); Ação de discriminação de terras devolutas da União (art. 20 da Lei n. 6.383/1976); Ação de usucapião especial (Lei n. 6.969/1981); Ação revisional de aluguel (art. 68 da Lei n. 8.245/1991); Ação relativa a danos pessoais causados por veículos e cobertos pelo seguro obrigatório (art. 10 da Lei n. 6.194/1974).