SOBRE A
CUMULAÇÃO DAS MULTAS COMPENSATÓRIA E MORATÓRIA NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO:
POSSIBILIDADE E CIRCUNSTÂNCIAS
Comumente os contratos de locação preveem cláusulas de multa moratória e de multa compensatória. São mecanismos distintos, mas que partem do mesmo fator comum: evitar o descumprimento contratual. Por isso, dado que possível discutir a incidência simultânea das multas, questiona-se se possível cumulá-las, e se sim, em quais hipóteses. Este é o objetivo deste parecer.
1. Multas compensatória e moratória: diferenças
A cláusula penal tem por finalidade principal evitar o descumprimento contratual, assim como garantir que caso este ocorra, a parte lesada seja compensada pela quebra do pacto, senão tenha garantida a diminuição do prejuízo sofrido. Nos termos de Maria Helena Diniz,
A cláusula penal ou pena convencional é um pacto pelo qual as próprias partes estipulam, de antemão, pena pecuniária ou não contra a parte infringente de obrigação, como consequência de sua inexecução culposa ou de seu retardamento, fixando, assim, o valor das pernas e danos e garantindo o cumprimento da obrigação principal.[1]
Consoante o art. 408 do Código Civil (CC), o devedor incorre na cláusula penal nas hipóteses de descumprimento de obrigação ou constituição em mora. Dessas hipóteses se ramifica a multa contratual em dois tipos: a compensatória e a moratória.
Quando se fala de multa compensatória, trata-se de descumprimento total ou parcial de obrigação prevista no contrato; por outro lado, no campo da multa moratória, tem-se caso de atraso, ou seja, de inadimplemento de obrigação.
É correto dizer também que a multa compensatória aponta para o fim da relação contratual, enquanto a moratória aponta para sua continuidade, por via da purgação do inadimplemento.
Nas relações locatícias, a distinção entre esses tipos de multa é clara. Com grande recorrência se estipula multa no caso de atraso no pagamento de aluguel ou no ressarcimento de taxa decorrente do uso do imóvel (tal como fatura de energia elétrica ou de água, quando paga pelo locador); esta é a cláusula moratória.
No mesmo contrato, mui provavelmente, também se encontrará multa para o caso de descumprimento de quaisquer de suas cláusulas, como nas hipóteses de desvio da finalidade da locação ou da resolução antecipada; aqui, verifica-se a cláusula compensatória.[2]
Para a multa moratória, a jurisprudência adota harmoniosamente o entendimento de que seu valor não pode exceder o percentual de 10% sobre a dívida, em respeito ao art. 9º do Decreto n. 22.626/1933 (Lei da Usura).[3]
Quanto ao limite da compensatória, há firme entendimento de que deve respeitar o limite de três aluguéis. Como exemplo, veja-se acórdão abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. INSURGÊNCIA DA AUTORA. TESE DE APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA SUPRESSIO. QUESTÃO QUE CONSTITUI INOVAÇÃO RECURSAL. APELO NÃO CONHECIDO NO PONTO.
MÉRITO. CONTRATO DE LOCAÇÃO EM SHOPPING CENTER. DESCUMPRIMENTO, PELA LOCATÁRIA, DA OBRIGAÇÃO DE REGULARIZAR PROJETO PREVENTIVO DE INCÊNDIO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE PENALIDADE CONTRATUAL PELO LOCADOR. MERA ENTREGA DAS CHAVES QUE NÃO AUTORIZA CONCLUIR PELA INEXIGIBILIDADE DA PENALIDADE. ADEMAIS, TERMO DE ENTREGA DE CHAVES QUE RESSALVA EXPRESSAMENTE A NECESSIDADE DE QUITAÇÃO DE EVENTUAIS VALORES EM ABERTO. MULTA QUE SE AFIGURA EXIGÍVEL.
PLEITO SUCESSIVO DE REDUÇÃO EQUITATIVA DA MULTA. APLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 413 DO CÓDIGO CIVIL MESMO EM SE TRATANDO DE CONTRATO DE LOCAÇÃO EM SHOPPING CENTER. CASO DOS AUTOS EM QUE A MULTA SE APRESENTA MANIFESTAMENTE EXCESSIVA. MINORAÇÃO PARA O VALOR CORRESPONDENTE A TRÊS ALUGUÉIS.
[...] RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NESTA EXTENSÃO, PARCIALMENTE PROVIDO.
(TJSC, Apelação n. 5020856-41.2020.8.24.0005, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Rosane Portella Wolff, Segunda Câmara de Direito Civil, j. 04-08-2022).
Postas as noções essenciais para a compreensão das multas e de suas diferenças, passa-se a analisar se viável cumulá-las em cobrança, pois em muitos casos pode-se identificar sua incidência mútua, sobretudo quando se tratando de contrato com previsão de rescisão em caso de inadimplemento de aluguéis.
2. Cumulação das multas: possibilidade e circunstâncias
De forma objetiva, extrai-se do Superior Tribunal de Justiça (STJ) o entendimento consolidado de que, em contrato de locação, é possível cumular a cobrança das multas compensatória e moratória, desde que cumpridos dois requisitos: 1) expressa previsão em contrato; 2) fatos geradores distintos:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO DE IMÓVEIS. DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC/73. ACÓRDÃO ESTADUAL FUNDAMENTADO. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. CUMULAÇÃO DE MULTAS. POSSIBILIDADE. FATOS GERADORES DISTINTOS. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
1. Não se verifica a alegada violação do art. 535 do CPC/73, na medida em que a eg. Corte de origem dirimiu, fundamentadamente, a questão que lhe foi submetida, não sendo possível confundir julgamento desfavorável, como no caso, com negativa de prestação jurisdicional ou ausência de fundamentação. 2. Não configura cerceamento de defesa o julgamento antecipado da lide nas hipóteses em que o Tribunal de origem considera o feito devidamente instruído, reputando desnecessária a produção de provas, por se tratar de matéria eminentemente de direito ou de fato já comprovado documentalmente, como é o caso dos autos.
3. Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a cumulação das multas moratória e compensatória é possível desde que ambas estejam previstas em contrato e tenham fatos geradores distintos. Precedentes.
4. Agravo interno desprovido.
(AgInt no AREsp n. 1.109.764/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 4/3/2024, DJe de 11/3/2024.)
No tocante ao primeiro requisito, a necessidade de ambas as multas estarem previstas expressamente em contrato decorre fundamentalmente dos princípios da autonomia da vontade das partes e do consensualismo, porquanto defesa a cobrança de penalidade não previamente acordada.
Acerca do segundo requisito, a exigência de as multas incidirem sobre fatos geradores distintos se dá para evitar bis in idem, isto é, penalização dupla sobre o mesmo fato, o que é vedado pelo ordenamento pátrio.
Assim, é plenamente viável, por exemplo, a cobrança mútua de multa moratória pelo atraso no pagamento de aluguéis e de multa compensatória pela entrega antecipada do imóvel, porquanto têm fatos geradores de naturezas distintas. A hipótese, inclusive, já foi objeto de julgamento do STJ:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE LOCAÇÃO. CLÁUSULA MORATÓRIA. CLÁUSULA COMPENSATÓRIA. CUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE BIS IN IDEM.
1.É possível a cumulação da multa moratória em razão da falta de pagamento de aluguéis com a multa compensatória estipulada no contrato de locação em virtude da devolução do imóvel antes do prazo estipulado para o término da locação. Tais fatos geradores, por serem diversos, não configuram, bis in idem.
2. Agravo regimental não provido.
(AgRg no AREsp n. 388.570/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 16/6/2016, DJe de 27/6/2016.)
Pode-se levantar a discussão de se possível a cumulação das multas, quando expressamente previstas, em caso de ação de despejo motivada pelo atraso reiterado de pagamento de aluguéis. Ter-se-ia, na hipótese, inadimplemento de aluguéis e descumprimento de obrigação que ensejou a intenção de rescisão contratual.
Ocorre que, mesmo que a cobrança da multa compensatória se baseasse na intenção de rescisão por descumprimento de obrigação, esta seria a de inadimplemento, já penalizada pela multa moratória. Por isso, inviável a cumulação, dado que incorreria em bis in idem.
Ademais, não sendo possível cumulá-las, impende abordar se em circunstância do tipo é possível optar pela multa a ser cobrada. Em resumo, a resposta é sim, a depender da circunstância. Explica-se.
Enquanto não efetivado o despejo, a cobrança é essencialmente por inadimplemento, com possibilidade legal de purgação da mora pelo locatário (art. 62, II da Lei 8.245/91), a qual evita a quebra contratual. Porque ainda possível a continuidade da relação, entende-se que exigível, nessa circunstância, somente a multa moratória.
Por outro lado, se efetivado o despejo, compreende-se cabível a cobrança de multa compensatória. Isso porque, rescindido contrato, não mais se cogita sua continuidade, tomando espaço a penalização pela quebra contratual antes do prazo acordado.
O entendimento encontra respaldo em interessante decisão do STJ, que firmou ser viável a cobrança de multa compensatória pela devolução antecipada de imóvel motivada por ordem judicial em ação de despejo:
RECURSO ESPECIAL. LOCAÇÃO DE IMÓVEL NÃO RESIDENCIAL. DESPEJO. FALTA DE PAGAMENTO. ART. 4º, CAPUT, DA LEI Nº 8.245/1991. DEVOLUÇÃO DO IMÓVEL. ORDEM JUDICIAL. MULTA COMPENSATÓRIA. CABIMENTO. FIADOR. RESPONSABILIDADE.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ).
2. Cinge-se a controvérsia definir se, em contrato de locação, a cláusula penal compensatória é devida com a devolução do imóvel decorrente de decisão judicial que decreta o despejo ou somente em caso de restituição voluntária do imóvel pelo locatário e, nessa situação, saber se o fiador responde solidariamente pelo pagamento da referida multa.
3. A multa compensatória também é devida em caso de devolução do imóvel locado determinada em ordem judicial de despejo.
4. Na hipótese de não ter havido extinção ou exoneração da garantia prestada, a responsabilidade pelo pagamento da multa compensatória também recai sobre fiador.
5. Recurso especial não provido.
(REsp n. 1.906.869/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 17/6/2022.)
Como se vê, segundo exegese do Tribunal Superior, por força do art. 4º da Lei 8.245/1991, a multa compensatória é devida pelo locatário tanto pela devolução antecipada voluntária do imóvel, quanto pela involuntária. Sobre, colhe-se trecho do Acórdão:
Por isso, cumpre ressaltar que o art. 4º, caput, da Lei n. 8.245/1991, quando utiliza a construção “poderá devolvê-lo”, não se refere apenas à devolução por atitude espontânea do locatário, mas também às hipóteses nas quais a restituição do bem ocorre forçadamente por força de determinação judicial.[4]
Em conclusão, ainda que necessários maiores estudos sobre o tema, que comporta pontos controversos, expõe-se que as multas compensatória e moratória, as quais não se confundem, podem ser cobradas simultaneamente em contratos de locação, desde que expressamente previstas em contrato e incidentes sobre fatos geradores distintos, sendo que em caso de rescisão motivada pela inadimplência do locatário é possível a cobrança de multa compensatória, contanto que pactuada.
Itajaí/SC, 25 de outubro de 2024.
Isaque Tolentino Teixeira
OAB/SC 68.576
Referências das fontes citadas
DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2020.
[1] DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 355.
[2] VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2020. p. 63.
[3] Como exemplo, vide: TJSC, Apelação n. 0300441-46.2019.8.24.0082, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Osmar Nunes Júnior, Sétima Câmara de Direito Civil, j. 22-08-2024.
[4] REsp n. 1.906.869/SP.