É amplamente reconhecido que, nas hipóteses de abuso da personalidade jurídica, caracterizadas pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, é possível a desconsideração da personalidade jurídica, conforme previsto no artigo 50 do Código Civil.
No entanto, uma grande parcela da jurisprudência, ao analisar a legitimidade do sócio retirante para figurar no polo passivo do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, tem adotado como limitação temporal a aplicação do prazo de dois anos estabelecido nos artigos 1.003, parágrafo único[1], e 1.032 do Código Civil[2].
Nesse sentido, o TJPR, ao apreciar o tema, entendeu ser inviável perpetuar a responsabilidade do sócio-retirante, sob pena de se afetar a segurança jurídica dos negócios:
APELAÇÃO CÍVEL. EXECUÇÃO DE TITULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. DEFERIMENTO DO REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO CONTRA A PESSOA DO EX-SÓCIO SEM A PRÉVIA E NECESSÁRIA EXISTÊNCIA DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA. AUSÊNCIA DE ANÁLISE QUANTO AOS REQUISITOS. DEFERIMENTO DIRETO DE CITAÇÃO DE EX-SÓCIO. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE SOB O PLEITO DE ILEGITIMIDADE PASSIVA. INSTRUMENTO PROCESSUAL ADEQUADO. ACOLHIMENTO. RESPONSABILIDADE DO EX-SÓCIO PELAS DÍVIDAS CONTRAÍDAS ANTES DE SUA RETIRADA. OBSERVÂNCIA DO PRAZO DECADENCIAL DE 2 (DOIS) ANOS. INTELIGÊNCIA DOS ARTIGOS. 1.003, PARÁGRAFO ÚNICO E 1.032 DO CÓDIGO CIVIL. DECISÃO MANTIDA POR FUNDAMENTO DIVERSO. HONORÁRIOS RECURSAIS. ART. 85, §11 DO CPC/15.1. A prévia instauração de incidente de desconsideração de personalidade jurídica como preceituam os artigos 133 a 137 e §4º, do artigo 795 do Código de Processo Civil é necessária para legitimar o direcionamento da execução a ex-sócio.2. O artigo 1.032 do Código Civil ao trazer que a responsabilidade do ex-sócio se estende pelo prazo de dois anos após a averbação de sua retirada da sociedade deve ser interpretado de forma decadencial, sob pena de perpetuar a responsabilidade de sócio retirante, o que sabe-se, afeta a segurança jurídica dos negócios e das pessoas.3. Diante do desprovimento do recurso de apelação, os honorários advocatícios devem ser majorados, nos termos do art. 85, §11 do CPC/15.4. Apelação Cível conhecida e desprovida.
Na mesma linha de pensamento, colacionam-se dois julgados recentíssimos do TJDFT e do TJSP:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRAORDINÁRIA DO SÓCIO RETIRANTE. IMPOSSIBILIDADE. TRANSCURSO DO PRAZO DE DOIS ANOS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. NÃO CABIMENTO. DESVIO DE FINALIDADE NÃO COMPROVADO.
1. É de se ressaltar que o art. 1.033 do Código Civil, em seu parágrafo único, estipula que a responsabilidade do sócio-retirante persiste pelo prazo de dois anos após a averbação da resolução da sociedade. Portanto, considerando que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade foi protocolado somente após o transcurso de dois anos constante da norma supracitada, torna-se inviável a responsabilidade civil extraordinária do sócio retirante.
2. A parte exequente afirma que a pessoa jurídica está inapta, sem a integral quitação das dívidas. Todavia, o exclusivo esvaziamento patrimonial, desacompanhado de elementos que comprovem que essa circunstância ocorreu com o intuito de desvio de finalidade da pessoa jurídica, não se revela suficiente para o acolhimento da desconsideração.
3. Agravo de instrumento conhecido e não provido.
(Acórdão 1836261, 0753848-83.2023.8.07.0000, Relator(a): SONÍRIA ROCHA CAMPOS D'ASSUNÇÃO, 6ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 20/03/2024, publicado no DJe: 12/04/2024. – sem grifo no original)
E, ainda:
AGRAVO DE INSTRUMENTO – DESCONSIDERAÇÃO
DA PERSONALIDADE JURÍDICA – EX-SÓCIA – INCLUSÃO NO POLO PASSIVO - NECESSIDADE
DE VERIFICAÇÃO DO MOMENTO DA AVERBAÇÃO DO CONTRATO SOCIAL E DEFERIMENTO DA
DESCONSIDERAÇÃO – Responsabilidade da ex-sócia – Admissibilidade – Inocorrência
de decurso de mais de dois anos entre a averbação da retirada da sócia e a
desconsideração da personalidade jurídica. Manutenção da r. decisão recorrida.
Recurso não provido.
(TJSP; Agravo de Instrumento 2314571-29.2024.8.26.0000; Relator
(a): Roberto Mac Cracken; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado;
Foro de São Bernardo do Campo - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento:
13/11/2024; Data de Registro: 13/11/2024 – sem grifo no original).
Não obstante respeite-se o posicionamento adotado nos julgados supramencionados, aparenta ser equivocada a interpretação dos dispositivos no sentido de se aplicar o prazo de dois anos nos incidentes de desconsideração da personalidade jurídica.
A análise dos artigos 1.003, parágrafo único, e 1.032 do Código Civil revela que o prazo de dois anos se refere à responsabilidade ordinária do sócio retirante em relação às obrigações da sociedade, como a integralização do capital social, não se aplicando, portanto, à desconsideração da personalidade jurídica, que é fundamentada em situações de abuso, como o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial.
Diante dessa celeuma, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou entendimento no sentido de que é inaplicável o referido prazo ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, porquanto se tratam de institutos jurídicos distintos:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ARTS. 1.003 E 1.032 DO CC/2002. INAPLICABILIDADE. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. SÚMULA N. 83/STJ. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA N. 283/STF. DECISÃO MANTIDA.
1. Não se aplicam os prazos dos arts. 1.003, parágrafo único, e 1.032 do CC/2002 para a responsabilização dos sócios, no caso de desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes.
2. Inadmissível o recurso especial quando o entendimento adotado pelo Tribunal de origem coincide com a jurisprudência do STJ.
3. O recurso especial que não impugna fundamento do acórdão recorrido suficiente para mantê-lo não deve ser admitido, a teor da Súmula n. 283/STF.
4. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no AREsp n. 2.259.375/RJ, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 18/12/2023, DJe de 20/12/2023.)
E, ainda:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA DA DECISÃO DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL. AUSÊNCIA. SÚMULA 182/STJ. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. INCLUSÃO DE EX-SÓCIO NO POLO PASSIVO DA EXECUÇÃO. POSSIBILIDADE.
1. Ação de execução de títulos extrajudiciais (cheques), em que instaurado incidente de desconsideração da personalidade jurídica da executada.
2. O agravo interposto contra decisão de inadmissão de recurso especial que não impugna, especificamente, todos os fundamentos por ela utilizados, não deve ser conhecido. Incidência da Súmula 182/STJ.
3. Ainda que assim não fosse, eventual alteração do entendimento do acórdão recorrido, para o fim de afastar o reconhecimento do desvio de finalidade da pessoa jurídica, demandaria desta Corte, inevitavelmente, o revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, o que é vedado na estreita via do recurso especial. Súmula 7/STJ.
4. "Conforme a jurisprudência desta Corte Superior, decretada a desconsideração da personalidade jurídica da empresa devedora para atingir os bens particulares do sócio retirante, não há que se perquirir a respeito da implementação ou não do prazo disposto nos arts. 1.003 e 1.032 do CC, tendo em vista que a disregard doctrine refere-se a uma responsabilidade extraordinária, fundada na existência de abuso de direito, tratando-se, portanto, de institutos jurídicos distintos" (AgInt no AREsp n. 1.232.403/SP, Terceira Turma, DJe de 22/11/2018.)
5. Agravo interno não provido.
(AgInt no AREsp n. 2.282.817/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 17/4/2023, DJe de 19/4/2023.)
Logo, a responsabilidade do sócio retirante com base no abuso da pessoa jurídica não encontra limitação temporal, dado que a desconsideração da personalidade jurídica não está sujeita a nenhum prazo.
Isso porque, tratando-se de direito potestativo cuja lei não prevê prazo para exercício, a regra é a perpetuidade, de modo que, preenchidos os requisitos do art. 50 do Código Civil, pode a desconsideração ser requerida a qualquer tempo.
Sobre o tema, colaciona-se trecho de julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça ao julgar o REsp n. 1312591/RS.
(...) Correspondendo a direito potestativo, sujeito a prazo decadencial, para cujo exercício a lei não previu prazo especial, prevalece a regra geral da inesgotabilidade ou da perpetuidade, segundo a qual os direitos não se extinguem pelo não-uso. Assim, à míngua de previsão legal, o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, quando preenchidos os requisitos da medida, poderá ser realizado a qualquer tempo. (...)
Em resumo, a desconsideração da personalidade jurídica não está sujeita ao prazo de dois anos previsto nos artigos 1.003 e 1.032 do Código Civil, uma vez que se trata de um instituto de responsabilidade extraordinária, fundamentado em abuso de direito, e, portanto, pode ser requerida a qualquer tempo, desde que preenchidos os requisitos do artigo 50 do Código Civil.
É o parecer.
Eduarda Weinrich dos Santos
OAB/SC 60374
[1] Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade.
Parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.
[2] Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação.